Vol. II – (4) III – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS (BREUER)
Na “Comunicação Preliminar” que introduz este trabalho formulamos as conclusões a que fomos levados por nossas observações, e penso que posso mantê-las em essência. Mas a “Comunicação Preliminar” é tão curta e concisa que, em sua maior parte, só nos foi possível ventilar nossos conceitos. Portanto, agora que os casos clínicos apresentaram provas que confirmam nossas conclusões, talvez seja permissível enunciá-las mais amplamente. Por certo aqui não é uma questão, é evidente, de lidar com todo o campo da histeria. Mas talvez possamos dar um tratamento mais detido e mais claro (com acréscimo de algumas ressalvas, sem dúvida) dos pontos para os quais foram reunidas provas insuficientes ou que não receberam bastante destaque na “Comunicação Preliminar”.
No que se segue, far-se-á pouca menção ao cérebro e nenhuma absolutamente às moléculas. Os processos psíquicos serão abordados na linguagem da psicologia; e, a rigor, não poderia ser de outra forma. Se em vez de “idéia” escolhêssemos falar em “excitação do córtex”, a segunda expressão só teria algum sentido para nós na medida em que reconhecêssemos um velho amigo sob esse disfarce e tacitamente restaurássemos a “idéia”. Pois, enquanto as idéias são objetos permanentes de nossa experiência e nos são familiares em todas as suas gradações de significado, as “excitações corticais” pelo contrário, têm mais a natureza de um postulado: são objetos que temos a esperança de identificar no futuro. A substituição de um termo pelo outro não pareceria ser mais do que um disfarce desnecessário. Por conseguinte, talvez me seja perdoado recorrer quase exclusivamente a termos psicológicos.
Há outro aspecto para o qual devo pedir de antemão a indulgência do leitor. Quando uma ciência vem fazendo rápidos avanços, certos pensamentos inicialmente expressos por indivíduos isolados logo se transformam em domínio público. Dessa forma, ninguém que tente formular hoje seus conceitos sobre a histeria e sua base psíquica pode evitar repetir um grande número de idéias de outrem que se acham em transição do domínio pessoal para o público. É difícil ter sempre a certeza de quem os expressou pela primeira vez, e há sempre o perigo de se considerar como produto próprio o que já foi dito por terceiros. Espero, portanto, que me desculpem se forem encontradas poucas citações neste trabalho e se não for feita qualquer distinção rigorosa entre o que é de minha própria lavra e o que tem origens alhures. Reivindicamos originalidade para uma parte muito pequena do que será encontrado nas páginas que se seguem.
(1) SERÃO IDEOGÊNICOS TODOS OS FENÔMENOS HISTÉRICOS?
Em nossa “Comunicação Preliminar” examinamos o mecanismo psíquico dos “fenômenos histéricos”, e não da “histeria”, pois não quisemos defender o conceito de que esse mecanismo psíquico, ou a teoria psíquica dos sintomas histéricos em geral, têm validade ilimitada. Não somos de opinião de que todos os fenômenos da histeria ocorram da maneira descrita por nós naquele artigo, nem acreditamos que todos sejam ideogênicos, isto é, determinados por idéias. Nesse aspecto divergimos de Moebius, que em 1888 propôs definir como histéricos todos os fenômenos patológicos determinados por idéias. Essa afirmação foi posteriormente elucidada no sentido de que apenas parte dos fenômenos patológicos corresponde, em seu conteúdo, às idéias que os provocam – a saber, os fenômenos que são produzidos por alo-sugestão ou auto-sugestão, como, por exemplo, quando a idéia de não poder mover o braço provoca uma paralisia do mesmo, enquanto outra parte dos fenômenos, embora causados por idéias, não corresponde a elas em seu conteúdo – como, por exemplo, quando em uma de nossas pacientes uma paralisia do braço foi provocada pela visão de objetos semelhantes a cobras |ver em [1]-[2]|.
Ao dar essa definição, Moebius não está meramente propondo uma modificação na nomenclatura e sugerindo que, no futuro, só deveremos descrever como histéricos os fenômenos patológicos que forem ideogênicos (determinados por idéias); o que ele está supondo é que todos os sintomas histéricos são ideogênicos. “Visto que as idéias são com muita freqüência a causa dos fenômenos histéricos, creio que sempre o são.” Ele denomina isso de inferência por analogia. Prefiro denominá-lo de generalização, cuja justificativa deve primeiro ser submetida à prova.
Antes de qualquer discussão do assunto, devemos obviamente decidir o que entendemos por histeria. Considero que a histeria é um quadro clínico empiricamente descoberto e baseado na observação, da mesma maneira que a tuberculose pulmonar. Esses quadros clínicos empiricamente obtidos ganham mais precisão, profundidade e clareza com o progresso de nossos conhecimentos, mas não devem nem podem ser desmontados por eles. A pesquisa etiológica revela que os vários processos constitutivos da tísica pulmonar têm diversas causas: o tubérculo é devido ao bacillus Kochii, enquanto a degeneração do tecido, a formação de cavernas e a febre séptica se devem a outros micróbios. Apesar disso, a tuberculose permanece como uma unidade clínica e seria um erro desintegrá-la, atribuindo-lhe apenas as modificações “especificamente tuberculosas” do tecido, provocadas pelo bacilo de Koch, e desvinculando dela as outras modificações. Da mesma forma, a histeria deve continuar a ser uma unidade clínica, mesmo se ficar demonstrado que suas manifestações são determinadas por várias causas e que algumas delas são acarretadas por um mecanismo psíquico e outras, não.
Estou convencido de que é isto o que de fato ocorre; apenas parte dos fenômenos da histeria é ideogênica, e a definição formulada por Moebius rompe a unidade clínica da histeria, e, a rigor, também a unidade de um mesmo sintoma num mesmo paciente.
Estaríamos fazendo uma inferência inteiramente análoga à “inferência por analogia” de Moebius, se afirmássemos que, como as idéias e percepções com muita freqüência provocam ereções, devemos presumir que só elas é que o fazem e que os estímulos periféricos só poriam esse processo vasomotor em ação por vias indiretas através da psique. Sabemos que essa inferência seria falsa e, no entanto, ela está baseada em pelo menos tantos fatos quanto os que fundamentam a asserção de Moebius sobre a histeria. De conformidade com nossa experiência de um grande número de processos fisiológicos, tais como a secreção de saliva ou de lágrimas, as modificações no trabalho do coração, etc., é possível e plausível presumir que o mesmíssimo processo pode ser igualmente acionado por idéias e por estímulos periféricos e outros estímulos não-psíquicos. O contrário teria de ser provado e estamos muito longe disso. Com efeito parece certo que muitos fenômenos descritos como histéricos não são provocados apenas por idéias.
Consideremos um exemplo cotidiano. Uma mulher pode, sempre que surge um afeto, apresentar no pescoço, nos seios e no rosto um eritema, que aparece primeiro em manchas e depois se torna confluente. Isso é determinado por idéias e, portanto, de acordo com Moebius, é uma manifestação histérica. Mas esse mesmo eritema surge, embora numa área menos extensa, quando a pele fica irritada ou é tocada, etc. Isso não seria histérico. Assim, um fenômeno que é indubitavelmente uma unidade completa seria histérico numa ocasião e não-histérico em outra. É claro que se pode indagar se esse fenômeno – o eretismo vasomotor – deveria ser considerado como especificamente histérico ou se não seria mais apropriado encará-lo como simplesmente “nervoso”. Do ponto de vista de Moebius, porém, o esfacelamento da unidade seria uma conseqüência necessária, de qualquer maneira, e só o eritema determinado pelo afeto deveria ser denominado histérico.
Isso se aplica exatamente do mesmo modo às dores histéricas, que são de tão grande importância prática. Sem dúvida, elas muitas vezes são determinadas diretamente por idéias. São “alucinações de dor”. Se as examinarmos bem mais de perto, veremos que, ao que parece, o fato de uma idéia ser muito nítida não é suficiente para produzi-las, mas que deve haver uma condição anormal especial nos aparelhos relativos à condução e percepção da dor, do mesmo modo que no caso do eritema emocional deve estar presente uma excitabilidade anormal dos vasomotores. A expressão “alucinações de dor” sem dúvida proporciona a mais rica descrição da natureza dessas nevralgias, mas também nos obriga a transpor para elas os conceitos que formamos sobre as alucinações em geral. Não caberia aqui um exame pormenorizado desses conceitos. Endosso a opinião de que as “representações”, imagens mnêmicas puras e simples, sem qualquer excitação do aparelho perceptivo, jamais, nem mesmo no ápice de sua nitidez e intensidade, atingem o caráter de existência objetiva, que é a marca das alucinações.
Isso se aplica às alucinações sensoriais e mais ainda às alucinações de dor, pois não parece possível que uma pessoa sadia seja capaz de dotar a lembrança de uma dor física sequer com o mesmo grau de nitidez ou sequer com uma aproximação distante da sensação real que pode, afinal de contas, ser alcançada pelas imagens mnêmicas ópticas e acústicas. Mesmo no estado alucinatório normal das pessoas sadias, que ocorre durante o sono, nunca há, creio eu, sonhos de dor, a menos que uma sensação real de dor esteja presente. Essa excitação “retrogressiva”, que emana do órgão da memória e atua sobre o aparelho perceptivo por meio das reproduções, é, portanto, no curso normal das coisas, ainda mais difícil no caso da dor do que no das sensações visuais ou auditivas. Uma vez que as alucinações de dor surgem com tanta facilidade na histeria, devemos pressupor uma excitabilidade anormal do aparelho relacionado com as sensações de dor.
Essa excitabilidade surge não apenas sob o estímulo das idéias, mas também sob estímulos periféricos, da mesma forma que o eretismo dos vasomotores que examinamos acima.
É uma observação cotidiana constatar que, nas pessoas com nervos normais, as dores periféricas são provocadas por processos patológicos não dolorosos em si mesmos, localizados em outros órgãos. Assim, surgem as dores de cabeça decorrentes de alterações relativamente insignificantes no nariz ou nas cavidades vizinhas, e nevralgias dos nervos intercostais e braquiais provenientes de patologias do coração, etc. Quando a excitabilidade anormal, que fomos obrigados a postular como uma condição necessária para as alucinações de dor, acha-se presente num paciente, essa excitabilidade também fica à disposição, por assim dizer, das irradiações que acabo de mencionar. As irradiações que ocorrem também em pessoas não-neuróticas são mais intensificadas e formam-se irradiações de um tipo que, na verdade, só encontramos em pacientes neuróticos, mas que se baseiam no mesmo mecanismo que as outras. Dessa forma, a nevralgia ovariana depende, creio eu, das condições do aparelho genital. Sua causalidade psíquica teria que ser provada, e não se chega a essa comprovação pela demonstração de que essa particular espécie de dor, como qualquer outra, pode ser produzida sob hipnose como uma alucinação, ou de que suas causas podem ser psíquicas. Tal como o eritema ou qualquer das secreções normais, a nevralgia surge tanto de causas psíquicas como de causas puramente somáticas. Será que devemos descrever apenas a primeira espécie como histérica – os casos que sabemos terem uma origem psíquica? Se assim for, os casos comumente observados de nevralgia ovariana teriam de ser excluídos da síndrome histérica, e isso mal seria uma solução.
Quando um ligeiro traumatismo numa articulação é gradativamente seguido de uma artralgia grave, o processo sem dúvida envolve um elemento psíquico, isto é, uma concentração da atenção na parte traumatizada, o que intensifica a excitabilidade dos filetes nervosos em questão. Poder-se-ia dificilmente expressar isso, no entanto, afirmando que a hiperalgesia foi causada por representações.
O mesmo se aplica à diminuição patológica da sensação. Não está de modo algum provado e é improvável que a analgesia geral ou a analgesia de partes individuais do corpo, desacompanhada de anestesia, seja provocada por representações. E mesmo que as descobertas de Binet e Janet fossem confirmadas por completo, no sentido de que a hemianestesia é determinada por uma condição psíquica peculiar, por uma divisão da psique, o fenômeno seria psicogênico, mas não ideogênico, e portanto, de acordo com Moebius, não deve ser denominado histérico.
Se existe, portanto, um grande número de fenômenos histéricos característicos que não podemos supor que sejam ideogênicos, pareceria acertado limitar a aplicação da tese de Moebius. Não definiremos como histéricos os fenômenos patológicos que são causados por representações, mas apenas asseveraremos que um grande número de fenômenos histéricos, provavelmente mais do que suspeitamos hoje em dia, são ideogênicos. Mas a alteração patológica fundamental que se acha presente em cada caso e que permite às representações, bem como aos estímulos não-psicológicos, produzirem efeitos patológicos, reside numa excitabilidade anormal do sistema nervoso. Até que ponto essa excitabilidade é de origem psíquica é uma outra questão.
Contudo, mesmo que apenas alguns dos fenômenos da histeria sejam ideogênicos, na verdade são eles que podem ser considerados especificamente histéricos, e é a investigação deles, a descoberta de sua origem psíquica, que constitui o avanço recente mais importante na teoria desse distúrbio. Surge então uma outra pergunta: como se dão esses fenômenos? Qual é seu “mecanismo psíquico”?
Essa pergunta exige uma resposta bem diferente no caso de cada um dos dois grupos em que Moebius divide os sintomas ideogênicos | ver em [1]|. Os fenômenos patológicos que correspondem em seu conteúdo à representação instigadora são relativamente compreensíveis e claros. Quando a representação de uma voz ouvida não a faz apenas ecoar fracamente no “ouvido interior”, como acontece nas pessoas sadias, mas a leva a ser percebida de maneira alucinatória como uma sensação acústica objetiva real, isso pode ser equiparado a fenômenos familiares da vida normal – aos sonhos – e é bem inteligível com base na hipótese de excitabilidade anormal. Sabemos que a cada movimento voluntário é a idéia do resultado a ser alcançado que dá início à contração muscular pertinente, e não é muito difícil ver que a idéia de que essa contração é impossível impedirá o movimento (como acontece na paralisia por sugestão).
A situação é outra com os fenômenos que não têm nenhuma conexão lógica com a representação determinante. (Também aqui, a vida normal oferece paralelos como, por exemplo, o enrubescer de vergonha.) Como surgem eles? Por que uma representação num homem doente evoca um movimento ou uma alucinação específica inteiramente irracional que de modo algum corresponde a ela?
Em nossa “Comunicação Preliminar” sentimo-nos em condições de dizer algo sobre essa relação causal com base em nossas observações. Em nossa exposição do assunto, entretanto, introduzimos e empregamos, sem o justificar, o conceito de “excitações que fluem ou têm de ser ab-reagidas”. Esse conceito, que é de fundamental importância para nosso tema e para a teoria das neuroses em geral, parece exigir e merecer um exame mais detalhado. Antes de passar a efetuá-lo, devo pedir desculpas por levar o leitor de volta aos problemas básicos do sistema nervoso. Um sentimento de opressão está fadado a acompanhar qualquer descida desse tipo até as “Mães” [isto é, à exploração das profundezas|.
Mas qualquer tentativa de chegar às raízes de um fenômeno leva inevitavelmente, dessa forma, a problemas básicos dos quais não se pode escapar. Espero, portanto, que a obscuridade do exame que se segue possa ser encarada com indulgência.
(2) AS EXCITAÇÕES TÔNICAS INTRACEREBRAIS - OS AFETOS
(A)
Conhecemos duas condições extremas do sistema nervoso central: um estado lúcido de vigília e um sono desprovido de sonhos. Uma transição entre elas é proporcionada por uma série de condições com todos os graus de decrescente lucidez. O que nos interessa aqui não é a questão da finalidade do sono e sua base física (seus determinantes químicos ou vasomotores), mas a questão da distinção essencial entre as duas condições.
Não podemos dar nenhuma informação direta sobre o sono mais profundo e sem sonhos, pela mesma razão de que todas as observações e experiências são excluídas pelo estado de total inconsciência. Mas no que tange à condição fronteiriça do sono acompanhado de sonhos podem-se fazer as asserções que se seguem. Em primeiro lugar, quando, estando nessa condição, tencionamos fazer movimentos voluntários - de andar, falar, etc. - isso não faz com que as contrações correspondentes dos músculos sejam voluntariamente iniciadas, como na vida de vigília. Em segundo lugar, os estímulos sensoriais talvez sejam percebidos (pois muitas vezes forçam sua entrada nos sonhos), mas não são apercebidos, isto é, não se tornam percepções conscientes. Além disso, as representações que emergem não ativam, como na vida de vigília, todas as representações vinculadas a ela e que se encontram presentes na consciência potencial; um grande número destas últimas permanece não excitado. (Por exemplo, descobrimo-nos falando com uma pessoa morta sem nos lembrarmos de que está morta.) Outrossim, representações incompatíveis podem estar presentes ao mesmo tempo sem se inibirem mutuamente, como fazem na vida de vigília. Dessa forma, a associação é imperfeita e incompleta. Podemos presumir com segurança que, no sono mais profundo, essa ruptura das vinculações entre os elementos psíquicos é levada ainda mais além e se torna total.
Por outro lado, quando estamos inteiramente acordados, todo ato de vontade inicia o movimento correspondente; as impressões sensoriais transformam-se em percepções conscientes e as representações se associam com todo conteúdo presente na consciência potencial. Nesse estado o cérebro funciona como uma unidade, com conexões internas completas.
Talvez estejamos apenas descrevendo esses fatos com outras palavras, se dissermos que, no sono, as vias de conexão e condução do cérebro não são percorríveis pelas excitações dos elementos psíquicos (células corticais?), ao passo que na vida de vigília o são inteiramente.
A existência desses dois estados diferentes das vias de condução, ao que parece, só pode tornar-se inteligível se supormos que, na vida de vigília, essas vias se encontram num estado de excitação tônica (o que Exner |1894, 93| chama de “tetania intercelular”) e que essa excitação intracerebral tônica é o que determina sua capacidade condutora, sendo que sua diminuição e desaparecimento é que estabelecem o estado de sono.
Não devemos pensar na via cerebral de condução como semelhante a um fio telefônico que só é eletricamente excitado no momento em que tem de funcionar (isto é, no contexto presente, quando tem que transmitir um sinal). Devemos assemelhá-lo ao tipo de fio telefônico em que há sempre um fluxo constante de corrente galvânica e que deixa de ser excitável quando tal corrente cessa. Ou melhor, imaginemos um sistema elétrico amplamente ramificado para transmissão de luz e força; o que se espera desse sistema é que o simples estabelecimento de um contato seja capaz de pôr qualquer lâmpada ou máquina em funcionamento. Para possibilitar isso, de modo que tudo esteja pronto para funcionar, deve haver certa tensão presente em toda a rede de linhas de condução, devendo o gerador despender uma dada quantidade de energia para esse fim. Da mesma forma, há certa quantidade de excitação presente nas vias condutoras do cérebro quando este se encontra em repouso, mas desperto e preparado para trabalhar.
Esse conceito é apoiado pelo fato de que estar meramente desperto, sem realizar qualquer trabalho, dá lugar à fadiga e produz a necessidade de dormir. O estado de vigília em si provoca um consumo de energia.
Imaginemos um homem num estado de intensa expectativa, que não está, contudo, dirigida para qualquer campo sensorial específico. Temos então diante de nós um cérebro em repouso mas preparado para a ação. Podemos com razão supor que em tal cérebro todas as vias de condução se encontram no máximo de sua capacidade condutora - que se acham num estado de excitação tônica. É significativo que na linguagem comum nos refiramos a esse estado como sendo de tensão. A experiência nos ensina o quanto de desgaste esse estado representa e como pode ser fatigante, mesmo que nenhum trabalho motor ou psíquico seja nele realizado.
Esse é um estado excepcional que, precisamente por causa do grande consumo de energia em jogo, não pode ser tolerado por muito tempo. Mas mesmo o estado normal de estar bem desperto exige uma quantidade de excitação intracerebral que varia entre limites separados de forma não muito ampla. Cada grau decrescente de vigília, até a sonolência e o verdadeiro sono, faz-se acompanhar por graus correspondentes menores de excitação.
Quando o cérebro está realmente trabalhando, exige-se sem dúvida um consumo maior de energia do que quando está apenas preparado para executar trabalho. (Da mesma forma, o sistema elétrico descrito anteriormente à guisa de analogia deve fazer com que maior quantidade de energia elétrica flua para as linhas condutoras quando um grande número de lâmpadas ou motores está ligado ao circuito.) Quando o funcionamento é normal, não se libera maior quantidade de energia do que a empregada de imediato na atividade. O cérebro, contudo, comporta-se como um daqueles sistemas elétricos de capacidade restrita que são incapazes de produzir ao mesmo tempo uma quantidade superior de luz e de trabalho mecânico. Quando um deles está transmitindo força, dispõe-se apenas de uma pequena quantidade de energia para a iluminação, e vice-versa. Assim, constatamos que, se estivermos fazendo grandes esforços musculares, seremos incapazes de nos empenharmos num raciocínio contínuo, ou que, se concentrarmos nossa atenção num único campo sensorial, a eficiência dos outros órgãos cerebrais ficará reduzida - em outras palavras, verificamos que o cérebro trabalha com uma quantidade de energia variável, mas limitada.
A distribuição não-uniforme de energia é sem dúvida determinada pelo que Exner |1894, 165| denomina de “facilitação pela atenção” - por um aumento da capacidade condutora das vias em uso e um decréscimo da capacidade das outras, e assim, num cérebro em funcionamento, a “excitação tônica intracerebral” também é distribuída de maneira não uniforme.
Despertamos uma pessoa que está adormecida - ou seja, elevamos de repente a quantidade de sua excitação intracerebral tônica - fazendo que um vívido estímulo sensorial exerça influência sobre ela. Se as alterações na circulação sanguínea cerebral são aqui elos essenciais na corrente causal, e se os vasos sanguíneos são diretamente dilatados pelo estímulo, ou se a dilatação é conseqüência da excitação dos elementos cerebrais - tudo isso é incerto. O certo é que o estado de excitação, penetrando por uma das portas dos sentidos, espalha-se pelo cérebro a partir desse ponto, torna-se difuso e leva todas as vias de condução a um estado de facilitação mais elevado.
Ainda não está nada esclarecido, é natural, como ocorre o despertar espontâneo - se é sempre a mesma parte do cérebro que entra num estado de excitação de vigília, e se a excitação então se difunde a partir dali, ou se ora um, ora outro grupo de elementos atua como o agente que desperta. Não obstante, o despertar espontâneo que, como sabemos, pode ocorrer na total quietude e escuridão sem qualquer estímulo externo, prova que o desenvolvimento da energia se baseia no processo vital dos próprios elementos cerebrais. Um músculo pode permanecer não estimulado e quiescente por mais que tenha ficado em estado de repouso e mesmo que tenha acumulado um máximo de força elástica. O mesmo não se aplica aos elementos cerebrais. Sem dúvida, temos razão ao supor que durante o sono os elementos cerebrais recuperam sua condição anterior e acumulam energia potencial. Quando isso acontece até certo ponto - quando, por assim dizer, certo nível é atingido - o excedente é descarregado nas vias de condução, facilita-as e estabelece a excitação intracerebral do estado de vigília.
Podemos encontrar um exemplo instrutivo da mesma coisa na vida de vigília. Quando o cérebro em vigília ficou quiescente por um tempo considerável, sem transformar a força elástica em energia ativa através de seu funcionamento, surgem uma necessidade e um impulso para a atividade. Aquiescência motora prolongada gera necessidade de movimento (compare-se o correr sem objetivo, de um lado para outro, de um animal enjaulado), e quando essa necessidade não pode ser atendida instaura-se uma sensação aflitiva. A falta de estímulos sensoriais, a escuridão e o silêncio total tornam-se uma tortura; o repouso mental e a falta de percepções, idéias e atividade associativa produzem o tormento de tédio. Essas sensações de desprazer correspondem a uma “excitação”, a um aumento da excitação intracerebral normal.
Assim, os elementos cerebrais, depois de serem restaurados por completo, liberam certa quantidade de energia mesmo quando estão em repouso; e quando essa energia não é empregada funcionalmente, ela aumenta a excitação intracerebral normal. O resultado é uma sensação de desprazer. Tais sensações são sempre geradas quando uma das necessidades do organismo deixa de encontrar satisfação. Visto que essas sensações desaparecem quando a quantidade excedente de energia que foi liberada é empregada funcionalmente, podemos concluir que a eliminação dessa excitação excedente é uma necessidade do organismo. E aqui deparamos pela primeira vez com o fato de que existe no organismo uma “tendência a manter constante a excitação intracerebral”. (Freud.)
Tal excedente de excitação é uma sobrecarga e um incômodo, e o impulso de consumi-lo surge como conseqüência disso. Quando não pode ser utilizado na atividade sensorial ou ideacional, o excedente se descarrega numa ação motora sem finalidade, no andar de um lado para outro e assim por diante - o que encontraremos mais à frente como o método mais comum de descarregar as tensões excessivas.
Estamos familiarizados com as grandes variações individuais que se encontram a esse respeito: as grandes diferenças entre as pessoas vivazes e as inertes e letárgicas, entre as que “não conseguem ficar paradas” e as que têm o “dom inato de se espreguiçarem nos sofás”, e entre os espíritos mentalmente ágeis e os embotados, que conseguem tolerar a inação intelectual por um período ilimitado de tempo. Essas diferenças, que constituem o “temperamento natural” de um homem, por certo se baseiam em profundas diferenças em seu sistema nervoso - no grau em que os elementos cerebrais funcionalmente quiescentes liberam energia.
Já nos referimos à tendência, por parte do organismo, a manter constante a excitação cerebral tônica. Uma tendência dessa natureza, porém, só se torna inteligível quando conseguimos ver a que necessidade atende. Podemos compreender a tendência nos animais de sangue quente de manter uma temperatura média constante porque nossa experiência nos ensinou que essa temperatura é a ideal para o funcionamento de seus órgãos. E fazemos uma suposição similar quanto à constância do teor de água no sangue, e assim por diante. Creio podermos também presumir que existe um ponto ótimo para o nível da excitação tônica intracerebral. Nesse nível de excitação tônica o cérebro é acessível a todos os estímulos externos, os reflexos são facilitados, embora apenas na medida da atividade reflexa normal, e o acervo de representações é passível de ser despertado e aberto à associação, na relação mútua entre representações individuais que corresponde a um estado mental de lucidez. É nesse estado que o organismo se acha mais bem preparado para funcionar.
A situação já fica alterada pela elevação uniforme | ver em [1]| da excitação tônica que constitui a “expectativa”. Isso torna o organismo hiperestésico aos estímulos sensoriais, que rapidamente se tornam aflitivos, e aumenta também sua excitabilidade reflexa acima do que é útil (inclinação ao susto). Sem dúvida esse estado é útil para algumas situações e finalidades, mas quando aparece espontaneamente e não por quaisquer dessas razões, não melhora nossa eficiência, mas a prejudica. Na vida cotidiana, chamamos a isso estar “nervoso”. Na grande maioria das formas de aumento da excitação, contudo, a superexcitação não é uniforme, o que é sempre prejudicial à eficiência. Chamamos a isso “excitamento”. Que o organismo tenda a manter o ponto ótimo de excitação e a retornar a esse ponto ótimo depois de havê-lo ultrapassado não é de se surpreender, mas está inteiramente de acordo com outros mecanismos reguladores do organismo.
Permitir-me-ei mais uma vez recorrer à comparação com um sistema de iluminação elétrica. A tensão na rede de linhas de condução possui também o seu ponto ótimo. Se este for ultrapassado, seu funcionamento pode ser prejudicado com facilidade; por exemplo, os filamentos da luz elétrica podem ser prontamente queimados. Falarei mais adiante sobre o dano causado ao próprio sistema se o isolamento falhar ou se ocorrer um “curto-circuito”.
(B)
Nossa fala, resultado da experiência de muitas gerações, distingue com admirável sutileza as formas e graus de elevação da excitação que ainda são úteis à atividade mental |isto é, apesar de se elevarem acima do ponto ótimo (ver penúltimo parágrafo)|, por elevarem a energia livre de todas as funções cerebrais de maneira uniforme, das formas e graus que prejudicam essa atividade, por aumentarem parcialmente e inibirem parcialmente essas funções psíquicas de uma maneira que não é uniforme. Às primeiras se dá o nome de “incitação” e às últimas, de “excitamento”. Uma conversa interessante ou uma xícara de chá ou café têm um efeito “incitante” |estimulante|; uma altercação ou uma dose considerável de álcool têm um efeito “excitante”. Enquanto a incitação desperta apenas a ânsia de empregar funcionalmente o excesso de excitação, o excitamento procura descarregar-se de formas mais ou menos violentas, que são quase ou decididamente patológicas. O excitamento constitui a base psicofísica dos efeitos, que serão examinados mais adiante. Mas devo em primeiro lugar abordar sucintamente algumas causas fisiológicas e endógenas dos aumentos de excitação.
Entre essas, em primeiro lugar, estão as principais necessidades e pulsões fisiológicas do organismo: a necessidade de oxigênio, o anseio intenso de alimentos e a sede. Visto que o excitamento que eles disparam está vinculado a certas sensações e idéias intencionais, esse não é um exemplo tão puro do aumento de excitação como o examinado anteriormente | ver em [1]-[2]|, que surgia apenas da aquiescência dos elementos cerebrais. O primeiro sempre possui seu colorido especial. Mas é inconfundível na agitação angustiante que acompanha a dispnéia e na inquietação de um homem faminto.
O aumento da excitação que provém dessas fontes é determinado pela alteração química dos próprios elementos cerebrais, que estão carentes de oxigênio, de força elástica ou de água. Tal excitação flui por vias motoras pré-formadas que levam à satisfação da necessidade que a estimulou: a dispnéia leva à respiração forçada, e a fome e a sede, à busca e obtenção de alimento e água. O princípio da constância da excitação quase não entra em ação no que tange a essa espécie de excitamento, pois os interesses que são atendidos pelo aumento da excitação nesses casos são de muito maior importância para o organismo do que o restabelecimento das condições normais de funcionamento no cérebro. É verdade que vemos os animais de um jardim zoológico correndo excitadamente de um lado para outro antes da hora da alimentação, mas isso sem dúvida pode ser considerado como um resíduo da atividade motora pré-formada de procurar alimento, que agora se tornou inútil pelo fato de estarem eles em cativeiro, e não como um meio de livrar o sistema nervoso do excitamento.
Se a estrutura química do sistema nervoso tiver sido permanentemente alterada pela introdução sistemática de substâncias estranhas, então a falta dessas substâncias provocará estados de excitamento, tal como a falta de substâncias nutritivas normais nas pessoas sadias. Vemos isso no excitamento que se verifica na abstinência de narcóticos.
Uma transição entre esses aumentos endógenos da excitação e os afetos psíquicos no sentido mais estrito é proporcionada pela excitação sexual e pelo afeto sexual. A sexualidade na puberdade surge, na primeira dessas formas, como uma elevação vaga, indeterminada e despropositada da excitação. À medida que o desenvolvimento se processa, tal elevação endógena da excitação, determinada pelo funcionamento das glândulas sexuais, torna-se firmemente vinculada (no curso normal das coisas) à percepção ou idéia do outro sexo – e, a rigor, à idéia de um indivíduo em particular, quando ocorre o notável fenômeno do apaixonar-se. Essa idéia absorve toda a quantidade de excitação liberada pela pulsão sexual. Torna-se uma “idéia afetiva”; em outras palavras, quando está ativamente presente na consciência, ela estimula o acréscimo de excitação que de fato se originou de outra fonte, a saber, as glândulas sexuais.
A pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa de acúmulos sistemáticos de excitação (e, por conseguinte, de neuroses). Esses aumentos distribuem-se de maneira muito desigual pelo sistema nervoso. Quando alcançam um grau considerável de intensidade, o encadeamento de idéias fica perturbado e o valor relativo das idéias se altera; e no orgasmo o pensamento é quase inteiramente extinto.
Também a percepção – a interpretação psíquica das impressões sensoriais – é prejudicada. Um animal normalmente tímido e cauteloso torna-se cego e surdo ao perigo. Por outro lado, pelo menos nos machos, há uma intensificação do instinto agressivo. Os animais pacíficos ficam perigosos, até a sua excitação ser descarregada nas atividades motoras do ato sexual.
(C)
Tal perturbação do equilíbrio dinâmico do sistema nervoso – uma distribuição não uniforme do aumento da excitação – é o que compõe a faceta psíquica dos afetos.
Não se fará aqui nenhuma tentativa de formular uma psicologia ou uma filosofia dos afetos. Examinarei apenas um único ponto, que é de importância para a patologia, e além disso apenas para os afetos ideogênicos – os que são provocados por percepções e representações. (Lange, 1885 |[1] e segs.|), ressaltou com razão que os afetos podem ser causados por substâncias tôxicas, ou, como a psiquiatria nos ensina, acima de tudo pelas alterações patológicas, quase da mesma forma que podem ser causadas pelas representações.
Pode-se considerar evidente por si mesmo que todas as perturbações do equilíbrio mental que denominamos de afetos agudos acompanham um aumento da excitação. (No caso dos afetos crônicos, tais como o pesar e a preocupação, isto é, a angústia prolongada, o quadro se complica por um estado de grave fadiga, que, embora mantenha a distribuição não uniforme da excitação, reduz sua intensidade.) Mas esse aumento da excitação não pode ser empregado na atividade psíquica. Todos os afetos intensos restringem a associação – o fluxo de representações. As pessoas ficam “insensatas” com a raiva ou com o pavor. Somente o grupo de representações que provocou o afeto persiste na consciência e o faz com extrema intensidade. Assim, a atividade associativa não consegue aplacar o excitamento.
Os afetos que são “ativos” ou “estênicos”, entretanto, de fato aplacam a excitação aumentada através da descarga motora. Os gritos e os saltos de alegria, o maior tônus muscular da cólera, as palavras raivosas e as ações retaliatórias – tudo isso permite que a excitação se escoe em movimentos. O sofrimento mental a descarrega na respiração difícil e em atividades secretoras: em soluços e lágrimas. É uma constatação cotidiana que tais reações reduzem e aliviam o excitamento. Como já tivemos ocasião de observar | ver em [1]|, a linguagem comum expressa isso em frases como “debulhar-se em lágrimas”, “desabar as mágoas”, etc. Aquilo que se está expelindo nada mais é do que o aumento da excitação cerebral.
Apenas algumas dessas reações, como os atos e as palavras raivosas, servem a uma finalidade no sentido de promoverem alguma modificação no estado real de coisas. O resto não serve a qualquer finalidade, ou melhor, seu único objetivo é aplainar o aumento da excitação e estabelecer o equilíbrio psíquico. Na medida em que o conseguem, servem à “tendência a manter constante a excitação |intra-|cerebral” | ver em [1]|.
Os afetos “astênicos” do medo e da angústia não promovem essa descarga reativa. O pavor paralisa por completo a capacidade de movimento, bem como a de associação, e o mesmo faz a angústia, quando a única reação útil – de fugir – é excluída pela causa do afeto de angústia ou pelas circunstâncias. A excitação do pavor só desaparece através de um nivelamento gradual.
A raiva dispõe de reações adequadas que correspondem a sua causa. Quando estas não são viáveis ou estão inibidas, são trocadas por substitutos. Até as palavras raivosas são substitutos dessa espécie. Mas outros atos, mesmo inteiramente destituídos de sentido, podem aparecer como substitutos. Quando Bismarck teve de reprimir seus sentimentos enraivecidos na presença do Rei, desabafou depois espatifando um valioso vaso no chão. Essa substituição deliberada de uma ação motora por outra corresponde exatamente à substituição dos reflexos naturais da dor por outras contrações musculares. Quando se extrai um dente; o reflexo pré-formado é o de empurrar o dentista e soltar um grito; se, em vez disso, contraímos os músculos dos braços e fazemos pressão nos braços da cadeira, estamos deslocando o quantum de excitação que foi gerado pela dor de um grupo de músculos para outro. |ver em [1].| No caso de uma violenta dor de dente espontânea, quando não há nenhum reflexo pré-formado afora o gemido, a excitação se escoa num despropositado andar de um lado para outro. Da mesma forma, transpomos a excitação da raiva da reação adequada para outra e nos sentimos aliviados, contanto que ela seja consumida por qualquer inervação motora vigorosa.
Quando, porém, o afeto não consegue encontrar nenhuma descarga de excitação de qualquer natureza dentro desses moldes, a situação é a mesma, tanto com a raiva quanto com o pavor e a angústia. A excitação intracerebral é poderosamente aumentada, mas não é empregada nem em atividade associativa, nem motora. Nas pessoas normais a perturbação é eliminada de modo gradativo. Mas em algumas, aparecem reações anormais. Forma-se uma “expressão anormal dos afetos”, como afirma Oppenheim |1890|.
(3) CONVERSÃO HISTÉRICA
Dificilmente hão de suspeitar que identifico a excitação nervosa com a eletricidade por eu recorrer mais uma vez à comparação com um sistema elétrico. Quando a tensão em tal sistema torna-se excessivamente alta, há um risco de que ocorra uma interrupção nos pontos fracos do isolamento. Os fenômenos elétricos aparecem então em pontos anormais, ou, quando dois fios estão muito próximos um do outro, dá-se um curto-circuito. Visto que uma alteração permanente produz-se nesses pontos, a perturbação assim provocada pode repetir-se constantemente se a tensão for aumentada de modo suficiente. Passou a haver uma “facilitação” anormal.
É perfeitamente possível afirmar que as condições que se aplicam ao sistema nervoso são, até certo ponto, semelhantes. Ele forma em toda a sua extensão um todo interligado, mas em muitos de seus pontos interpõem-se grandes resistências, embora não insuperáveis, que impedem a distribuição geral uniforme da excitação. Assim, nas pessoas normais em estado de vigília, a excitação no órgão de representação não passa para os órgãos da percepção: essas pessoas não têm alucinações. |ver em [1].| A bem da segurança e da eficiência do organismo, os plexos nervosos dos complexos de órgãos que são de importância vital – os aparelhos circulatório e digestivo – são separados por fortes resistências dos órgãos de representação. Sua independência está assegurada e eles não são diretamente afetados pelas representações. Mas as resistências que impedem a passagem da excitação intracerebral para os aparelhos circulatório e digestivo variam de intensidade de um indivíduo para outro. Todos os graus de excitabilidade afetiva situam-se, por um lado, entre o ideal (que raramente se encontra hoje em dia) de um homem absolutamente livre de problemas dos “nervos” – um homem cuja ação cardíaca permanece constante em todas as situações e só é afetada pelo trabalho específico que tem de realizar, um homem que tem bom apetite e boa digestão, qualquer que seja o perigo em que se ache – entre um homem desse tipo e, por outro lado, um homem “nervoso”, que tem palpitações e diarréia à menor provocação.
Como quer que seja, há resistências nas pessoas normais contra a passagem da excitação cerebral para os órgãos vegetativos. Essas resistências correspondem ao isolamento nas linhas condutoras elétricas. Nos pontos onde estão anormalmente fracas, elas são invadidas quando a tensão da excitação cerebral se eleva, e esta – a excitação afetiva – passa para os órgãos periféricos. Segue-se a isso uma “expressão do afeto anormal”.
Dos dois fatores que mencionamos como responsáveis por esse resultado, um já foi examinado por nós com pormenores. Esse primeiro fator é um alto grau de excitação intracerebral que deixou de ser aplacada, fosse por atividades ideacionais, fosse pela descarga motora, ou que é grande demais para ser enfrentado dessa maneira.
O segundo fator é uma fraqueza anormal das resistências em algumas vias específicas de condução. Isso pode ser determinado pela constituição inicial do indivíduo (predisposição inata), ou pode ser determinado por estados de excitação de longa duração, que afrouxam, por assim dizer, toda a estrutura do sistema nervoso do indivíduo e reduzem toda a sua resistência (predisposição puberal); ou pode ser determinado por influências debilitantes, como doença e subnutrição (predisposição devida aos estados de esgotamento). A resistência de certas vias específicas de condução pode estar reduzida por uma doença prévia do órgão em causa, que facilitou as vias que ascendem e descendem do cérebro. Um coração doente é mais suscetível à influência de um afeto do que um coração sadio. “Tenho uma espécie de caixa de ressonância no abdome”, disse-me uma mulher que sofria de parametrite; “quando acontece alguma coisa, ela recomeça minha antiga dor”. (Disposição através de doença local.)
As ações motoras em que a excitação dos afetos costuma ser descarregada são ordenadas e coordenadas, muito embora com freqüência sejam inúteis. Mas uma excitação excessivamente forte pode contornar ou irromper através dos centros coordenadores e se escoar em movimentos primitivos. Nos bebês, além do ato respiratório de gritar, os afetos só produzem e encontram expressão em contrações musculares descoordenadas desse tipo primitivo – em arquear o corpo e espernear. À medida que o desenvolvimento se processa, a musculatura passa cada vez mais para o controle da coordenação e da vontade. Mas o opistótono, que representa o máximo de esforço motor da musculatura somática total, bem como os movimentos clônicos do espernear e do debater-se, persistem pela vida afora como a forma de reação à excitação máxima do cérebro – à excitação puramente física dos ataques epilépticos e à descarga dos afetos máximos sob a forma de convulsões mais ou menos epileptóides (por exemplo, a parte puramente motora dos ataques histéricos).
É verdade que essas reações afetivas anormais são características da histeria. Mas também ocorrem independentemente dessa doença. O que indicam é um grau mais ou menos elevado de distúrbio nervoso, e não de histeria. Tais fenômenos não podem ser descritos como histéricos, quando aparecem como conseqüências de um afeto que, embora de grande intensidade, possui uma base objetiva, mas só quando surgem com aparente espontaneidade, como manifestações de uma moléstia. Estas últimas, como demonstraram muitas observações, inclusive as nossas, baseiam-se em lembranças que revivem o afeto original – ou melhor, que o reviveriam se essas reações de fato não ocorressem em seu lugar.
Pode-se admitir como certo que um fluxo de representações e lembranças corre pela consciência de qualquer pessoa razoavelmente inteligente enquanto sua mente está em repouso. Essas representações são tão pouco nítidas que não deixam nenhum traço na memória e é impossível dizer, posteriormente, como foi que as associações ocorreram. Quando, porém, surge uma representação que originalmente esteve vinculada a um afeto intenso, esse afeto é revivido com maior ou menor intensidade. A representação assim “colorida” pelo afeto emerge na consciência clara e nitidamente. A intensidade de afeto que pode ser liberada por uma lembrança é muito variável, conforme o grau em que tenha ficado exposta ao “desgaste” por diferentes influências e sobretudo o grau em que o afeto original tenha sido “ab-reagido”. Ressaltamos em nossa “Comunicação Preliminar” | ver em [1]| em que extensão variável o afeto de raiva diante de um insulto, por exemplo, é evocado por uma lembrança, conforme o insulto tenha sido revidado ou suportado em silêncio. Se o reflexo psíquico tiver sido plenamente realizado na ocasião original, a lembrança dele liberará uma quantidade muito menor de excitação. Em caso negativo, a lembrança ficará perpetuamente forçando nos lábios do indivíduo as palavras abusivas que foram originalmente reprimidas e que teriam sido o reflexo psíquico do estímulo original.
Nos casos em que o afeto original foi descarregado não através de um reflexo normal, mas por um reflexo “anormal”, este último é também liberado pela lembrança. A excitação decorrente da idéia afetiva é “convertida” (Freud) num fenômeno somático.
Caso esse reflexo anormal se torne inteiramente facilitado pela repetição freqüente, poderá, ao que parece, exaurir a força operativa das representações liberadoras de forma tão total que o próprio afeto não surgirá, ou surgirá com intensidade mínima. Em tal caso, a “conversão histérica” é completa. Além disso, a representação, que agora não produz mais quaisquer conseqüências psíquicas, pode ser desprezada pelo indivíduo, ou pode ser prontamente esquecida quando emergir, como qualquer outra representação desacompanhada de afeto.
Talvez seja mais fácil aceitar a possibilidade de uma excitação cerebral que deveria ter dado origem a uma representação ser substituída por uma excitação de alguma via periférica, se recordarmos o curso inverso dos acontecimentos que se verifica quando um reflexo pré-formado deixa de ocorrer. Escolherei um exemplo extremamente trivial – o reflexo do espirro. Quando um estímulo da membrana mucosa do nariz deixa, por qualquer motivo, de liberar esse reflexo pré-formado, surge uma sensação de excitação e de tensão, como todos sabemos. A excitação, que ficou impossibilitada de se escoar pelas vias motoras, agora, inibindo todas as outras atividades, dissemina-se pelo cérebro. Esse exemplo cotidiano nos fornece o modelo do que acontece quando um reflexo psíquico, mesmo o mais complicado, deixa de ocorrer. O excitamento que examinamos anteriormente | ver em [1]| como característica da pulsão de vingança é, em essência, o mesmo. E podemos seguir esse processo mesmo até as regiões mais elevadas da realização humana. Goethe não sentia haver elaborado uma experiência até tê-la descarregado numa atividade artística criadora. Esse era, no seu caso, o reflexo pré-formado concernente aos afetos, e enquanto não fosse levado a cabo, persistia no poeta o aumento aflitivo de excitação.
A excitação intracerebral e o processo excitatório nas vias periféricas são de magnitudes recíprocas: a primeira aumenta se e enquanto nenhum reflexo é liberado; diminui e desaparece depois de transformada em excitação nervosa periférica. Assim, parece compreensível que nenhum afeto observável seja gerado quando a representação que deveria tê-lo feito emergir libera imediatamente um reflexo anormal, no qual a excitação se escoa tão logo é gerada. A “conversão histérica” é então completa. A excitação intracerebral original pertinente ao afeto é transformada em processo excitatório nas vias periféricas. O que era originalmente uma representação afetiva deixa agora de provocar o afeto, suscitando apenas o reflexo anormal.
Acabamos de dar um passo além da “expressão anormal dos afetos”. Os fenômenos histéricos (reflexos anormais) não parecem ser ideogênicos mesmo para os pacientes inteligentes que são bons observadores, porque a representação que lhes deu origem não é mais colorida pelo afeto, nem destacada de outras representações e lembranças. Surgem como fenômenos puramente somáticos, aparentemente sem raízes psíquicas.
O que é que determina a descarga de afeto de tal forma que um específico reflexo anormal é produzido em vez de algum outro? Nossas observações respondem a essa pergunta, em muitos casos, revelando que novamente aqui a descarga segue o “princípio da menor resistência” e ocorre ao longo das vias cujas resistências já foram enfraquecidas por circunstâncias coincidentes. Isso abrange o caso que já mencionamos | ver em [1]| de um reflexo particular ser facilitado pela doença somática já existente. Se, por exemplo, alguém sofre com freqüência de dores cardíacas, estas também serão provocadas pelos afetos. Alternadamente, um reflexo pode ser facilitado pelo fato de a inervação muscular em causa ter sido deliberadamente pretendida no momento em que o afeto ocorreu originalmente.
Assim, Anna O. (em nosso primeiro caso clínico) | ver em [1]| tentou, em seu medo, estender o braço direito, que ficara dormente por causa da pressão contra o espadar da cadeira, a fim de afastar a cobra; e a partir dessa época a tetania no braço direito passou a ser provocada pela visão de qualquer objeto semelhante a cobras. Ou ainda | ver em [1]|, em sua emoção, ela forçou a vista para ler os ponteiros do relógio, e a partir de então um estrabismo convergente se transformou num dos reflexos daquele afeto. E assim por diante.
Isso se deve à ação da simultaneidade que de fato rege as nossas associações normais. Toda percepção sensorial traz de volta à consciência qualquer outra percepção sensorial que tenha originalmente ocorrido ao mesmo tempo. (Cf. o exemplo do livro-texto com a imagem visual de um carneiro e o som do seu balido, etc.) Se o afeto original se fez acompanhar de uma nítida impressão sensorial, esta última é evocada mais uma vez quando o afeto se repete; e já que é uma questão de descarga de uma excitação excessivamente grande, a impressão sensorial emerge não como uma lembrança, mas como uma alucinação. Quase todos os nossos casos clínicos proporcionam exemplos disso. É também o que aconteceu no caso de uma mulher que experimentou um afeto aflitivo numa época em que estava sofrendo de violenta dor de dente por causa de uma periostite, e que a partir daí passou a sofrer nevralgia infra-orbital sempre que o afeto se renovava ou sequer era relembrado | ver em [1]-[2]|.
O que temos aqui é a facilitação de reflexos anormais de acordo com as leis gerais da associação. Mas algumas vezes (embora, deva-se admitir, só em graus mais elevados de histeria) há verdadeiras seqüências de representações associadas entre o afeto e seu reflexo. Temos aí a determinação através do simbolismo. O que une o afeto ao seu reflexo é, muitas vezes, algum trocadilho ridículo ou associações pelo som, mas isso só acontece em estados semelhantes ao sonho, quando os poderes críticos se acham reduzidos, e está fora do grupo de fenômenos com que estamos lidando aqui.
Num grande número de casos o caminho seguido pela seqüência da determinação permanece ininteligível para nós, pois com freqüência temos uma compreensão muito incompleta do estado mental do paciente e um conhecimento imperfeito das representações que eram ativas por ocasião da origem do fenômeno histérico. Mas podemos presumir que o processo não é inteiramente dessemelhante do que podemos observar com clareza em casos mais favoráveis.
As experiências que liberaram o afeto original, cuja excitação foi então convertida num fenômeno somático, são por nós descritas como traumas psíquicos, e a manifestação patológica que surge desta forma, como sintomas histéricos de origem traumática. (A expressão “histeria traumática” já foi aplicada a fenômenos que, por serem conseqüência de danos físicos – traumas no sentido mais estrito do termo – fazem parte da classe das “neuroses traumáticas”.)
A gênese dos fenômenos que são determinados por traumas encontra analogia na conversão histérica da excitação psíquica, que se origina não de estímulos externos nem da inibição dos reflexos psíquicos normais, e sim da inibição do curso de associação. O exemplo e modelo mais simples disso é proporcionado pela excitação que surge quando não conseguimos recordar um nome ou não podemos solucionar um enigma, e assim por diante. Quando alguém nos diz o nome ou nos dá a resposta do enigma, a cadeia de associações termina e a excitação desaparece, exatamente como faz no final de uma cadeia de reflexos. A intensidade da excitação causada pelo bloqueio de uma linha de associações está na razão direta do interesse que temos nelas – isto é, do grau em que elas acionam nossa vontade. Visto, porém, que a procura de uma solução do problema, ou o que quer que seja, sempre envolve grande volume de trabalho, embora possa não ter nenhuma serventia, mesmo uma poderosa excitação encontra utilização e não pressiona a descarga, e conseqüentemente, jamais se torna patogênica.
Essa excitação, entretanto, se torna de fato patogênica quando o curso de associações é inibido graças às representações irreconciliáveis de igual importância – quando, por exemplo, novas representações entram em conflito com complexos representativos enraizados. Tais são os tormentos da dúvida religiosa a que muitas pessoas sucumbem e muitas outras sucumbiram no passado. Mesmo nesses casos, contudo, a excitação e o sofrimento psíquico acompanhante (a sensação de desprazer) só atingem um grau considerável quando entra em jogo algum interesse volitivo do sujeito – quando, por exemplo, alguém cheio de dúvidas se sente ameaçado em sua felicidade ou salvação. Tal fator está sempre presente, no entanto, quando o conflito se dá entre complexos firmemente enraizados de representações morais em que o indivíduo foi educado e a lembrança de ações ou simples pensamentos irreconciliáveis com essas representações; quando, em outras palavras, se sentem as dores da consciência. O interesse volitivo em gostar da própria personalidade e estar satisfeito com ela entra em ação nesse ponto e eleva ao mais alto grau a excitação atribuída à inibição das associações. É uma constatação cotidiana que um conflito entre representações irreconciliáveis possui um efeito patogênico. O que se acha em questão na maioria das vezes são representações e processos ligados à vida sexual: a masturbação num adolescente com susceptibilidades morais; ou, numa mulher casada de moral rigorosa, a conscientização de sentir-se atraída por um homem que não é o próprio marido. Com efeito, o primeiro aparecimento das sensações e representações sexuais, por si só, é muitas vezes suficiente para acarretar um intenso estado de excitação, por causa de seu conflito com a representação profundamente enraizada da pureza moral.
Um estado de excitação dessa natureza costuma ser seguido por conseqüências psíquicas, tais como a depressão patológica e os estados de angústia (Freud |1895b|). Às vezes, porém, algumas circunstâncias coincidentes acarretam um fenômeno somático anormal em que a excitação é descarregada. Assim, pode haver vômitos quando o sentimento de impureza produz uma sensação física de náusea; ou uma tussis nervosa, como em Anna O. (Caso Clínico nº 1 | ver em [1]|), quando a angústia moral provoca um espasmo da glote, e assim por diante.
Há uma reação normal apropriada à excitação provocada por representações muito nítidas e irreconciliáveis – a saber, comunicá-las pela fala. Um quadro divertidamente exagerado da ânsia de fazer isso é fornecido na história do barbeiro de Midas, que revelou em voz alta seu segredo aos caniços. Encontramos o mesmo anseio como um dos fatores básicos de uma grande instituição histórica – o confessionário católico romano. Dizer as coisas é um alívio; descarrega a tensão, mesmo quando a pessoa a quem elas são ditas não é um padre e mesmo quando não se procura qualquer absolvição. Quando se nega essa saída à excitação, ela às vezes se converte num fenômeno somático, tal como acontece com a excitação pertinente aos afetos traumáticos. Todo o grupo de fenômenos histéricos que assim se origina pode ser descrito, com Freud, como fenômenos histéricos de retenção.
O relato que fizemos até aqui do mecanismo pelo qual se originam os fenômenos histéricos está sujeito à crítica de ser esquemático em demasia e de simplificar os fatos. Para que uma pessoa saudável que não seja inicialmente neuropata possa desenvolver um sintoma histérico autêntico, com sua aparente independência da mente e com existência somática própria, deve haver sempre grande número de circunstâncias convergentes.
O caso seguinte servirá de exemplo da natureza complicada do processo. Um menino de doze anos de idade, que antes sofrera de pavor nocturnus e cujo pai era altamente neurótico, voltou certo dia da escola para casa sentindo-se mal. Queixava-se de dificuldade de engolir e de dor de cabeça. O médico da família presumiu que a causa fosse uma inflamação na garganta. Mas o estado não melhorou, mesmo após vários dias. O menino recusava os alimentos e vomitava quando estes lhe eram forçados. Movia-se de um lado para o outro apaticamente, sem energia ou prazer; queria ficar deitado o tempo todo e estava fisicamente muito abatido. Quando o examinei cinco semanas depois, ele me deu a impressão de ser uma criança acanhada e introvertida e me convenci de que seu estado tinha uma base psíquica. Ao ser inquirido detidamente, apresentou uma explicação trivial – uma reprimenda severa passada pelo pai – que claramente não fora a causa real de sua doença. Nada se pôde saber tampouco em sua escola. Prometi que extrairia a informação mais tarde, sob hipnose. Mas isso foi desnecessário. Reagindo a fortes apelos de sua mãe inteligente e enérgica, o menino debulhou-se em lágrimas e contou a seguinte história. Quando voltava da escola para casa, ele fora a um mictório e um homem lhe mostrara o pênis e pedira-lhe que ele o pusesse na boca. O garoto fugira apavorado e nada mais lhe tinha acontecido. Mas a partir daquele instante, adoeceu. Tão logo fez sua confissão, recuperou-se inteiramente. – Para produzir a anorexia, a dificuldade de engolir e os vômitos, vários fatores se fizeram necessários: a natureza neurótica inata do menino, seu intenso pavor, a irrupção da sexualidade em sua forma mais crua no seu temperamento infantil e, como fator especificamente determinante, a idéia de repulsa. A doença deveu sua persistência ao silêncio do menino, que impediu a excitação de encontrar sua saída normal.
Em todos os outros casos, como nesse, é preciso haver uma convergência de vários fatores para que um sintoma histérico possa ser gerado em qualquer um que até então tenha sido normal. Tais sintomas são invariavelmente “sobredeterminados”, para usar a expressão de Freud.
Pode-se presumir que uma sobre determinação dessa natureza também se ache presente quando o mesmo afeto é evocado por uma série de causas desencadeantes. O paciente e aqueles que o cercam atribuem o sintoma histérico apenas à última causa, embora essa causa, em geral, só tenha gerado algo que já fora quase realizado por outros traumas.
Uma moça de dezessete anos teve seu primeiro ataque histérico (seguido de vários outros) quando um gato pulou sobre seu ombro no escuro. O ataque parecia ser apenas o resultado do susto. Uma investigação mais detida revelou, contudo, que a moça, que era bonita e não muito vigiada, recentemente experimentara várias investidas mais ou menos brutais e ficara sexualmente excitada com elas. (Temos aqui o fator da predisposição.) Alguns dias antes, um jovem a atacara na mesma escada escura e ela fugira dele com dificuldade. Esse fora o verdadeiro trauma psíquico, que o gato nada mais fez do que tornar manifesto. Mas teme-se que em muitos outros casos dessa natureza o gato seja considerado a causa efficiens.
Para que a repetição de um afeto promova uma conversão dessa maneira, nem sempre é necessário que haja grande número de causas externas desencadeantes; a renovação do afeto na memória é também muitas vezes suficiente, se a lembrança for repetida com rapidez e freqüência, logo após o trauma e antes que seu afeto fique enfraquecido. Isso é o bastante caso o afeto tenha sido muito intenso. Tal é o caso da histeria traumática, no sentido mais estrito do termo. Durante os dias que se seguem a um acidente ferroviário, por exemplo, o sujeito volta a vivenciar suas experiências assustadoras, tanto dormindo como acordado, e sempre com o afeto renovado de pavor, até que afinal, depois desse período de “elaboração |élaboration| psíquica” (para usar a expressão de Charcot | ver em [1]| ou de “incubação”, ocorre a conversão num fenômeno somático (embora haja outro fator em causa, que teremos de examinar mais tarde).
Em geral, porém, uma representação afetiva é prontamente submetida a um “desgaste”, isto é, a todas as influências mencionadas em nossa “Comunicação Preliminar” (ver em. [1]), que a privam pouco a pouco de sua carga de afeto. Sua revivescência causa uma quantia sempre decrescente de excitação, e a lembrança perde assim a capacidade de contribuir para a produção de um fenômeno somático. A facilitação do reflexo anormal desaparece e o status quo ante é então restabelecido.
As influências do “desgaste”, entretanto, são todas efeitos da associação, do pensamento e de correções por referências a outras representações. Esse processo de correção torna-se impossível quando a representação afetiva retira-se do “contato associativo”. Quando isso acontece, a representação retém toda a sua carga afetiva. Visto que a cada renovação toda a soma de excitação do afeto original volta a ser liberada, a facilitação do reflexo anormal que se iniciou na época é finalmente estabelecida; ou então, se a facilitação já estava completa, ela é mantida e estabilizada. O fenômeno da conversão histérica assim se estabelece permanentemente.
Nossas observações mostram duas maneiras pelas quais as representações afetivas podem ser excluídas da associação.
A primeira é a “defesa”, a supressão deliberada de representações aflitivas que parecem ameaçar a felicidade ou a auto-estima do indivíduo. Em seu |primeiro| artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a) e em seus casos clínicos no presente volume, Freud examinou esse processo, que indubitavelmente possui altíssima significação patológica. Não podemos, é verdade, compreender como uma representação pode ser deliberadamente recalcada da consciência. Mas estamos perfeitamente familiarizados com o processo positivo correspondente, o de concentrar a atenção numa representação, e somos da mesma maneira incapazes de dizer como efetuamos isso. Assim, as representações de que a consciência se desvia, que não são objeto de pensamento, são também retiradas do processo de desgaste e retêm sua carga afetiva sem diminuição.
Verificamos ainda que existe outra espécie de representação que permanece isenta do desgaste pelo pensamento. Isso pode acontecer, não porque não se queira lembrar a representação, mas porque não se consegue lembrá-la: porque ela emergiu originalmente e foi dotada de afeto em estados com relação aos quais existe uma amnésia na consciência de vigília – isto é, na hipnose ou estados semelhantes a ela. Estes últimos parecem ser da mais alta importância para a teoria da histeria e, por conseguinte, merecem um exame um pouco mais complexo.
(4) ESTADOS HIPNÓIDES
Quando, em nossa “Comunicação Preliminar” | ver em [1]|, apresentamos a tese de que a base e condição sine qua non da histeria é a existência de estados hipnóides, estávamos desprezando o fato de que Moebius já dissera exatamente a mesma coisa em 1890. “A condição necessária para a atuação (patogênica) das idéias é, por um lado, uma predisposição inata – isto é, uma disposição histérica – e, por outro, um peculiar estado mental. Podemos apenas formar uma idéia imprecisa desse estado mental. Deve assemelhar-se a um estado de hipnose; deve corresponder a alguma espécie de vazio da consciência em que uma idéia emergente não depara com qualquer resistência por parte de outra – no qual, por assim dizer, o campo está livre para a primeira idéia que vier. Sabemos que esse tipo de estado pode ser acarretado não somente pelo hipnotismo, como também pelo choque emocional (susto, cólera, etc.) e por fatores que esgotam as forças (privação do sono, fome, etc.)” |Moebius, 1894, 17|.
O problema para cuja solução Moebius fazia aqui uma abordagem preliminar é o da geração de manifestações somáticas pelas idéias. Ele recorda nesse ponto a facilidade com que isso pode ocorrer sob hipnose e considera análoga à atuação dos afetos. Nosso conceito sobre a atuação dos afetos, um tanto diferente, foi plenamente explicado atrás | ver em [1] e segs.|. Não preciso, portanto, penetrar ainda mais na dificuldade existente na suposição de Moebius de que, na raiva, há um “vazio da consciência” (o que reconhecidamente existe no pavor e na angústia prolongada), ou na dificuldade mais geral de traçar uma analogia entre o estado de excitação num afeto e o estado quiescente na hipnose. Recorreremos mais adiante | ver em [1]|, contudo, a essas observações de Moebius, que em minha opinião contêm uma verdade importante.
A nosso ver, a importância desses estados que se assemelham à hipnose – “os estados hipnóides” – reside além disso e principalmente na amnésia que os acompanha e em seu poder de provocarem a divisão da mente, que logo examinaremos e que é de fundamental significação para a “grande histeria”. Ainda atribuímos essa importância aos estados hipnóides. Mas devo acrescentar uma ressalva substancial à nossa tese. A conversão – a produção ideogênica de fenômenos somáticos – também pode ocorrer independentemente dos estados hipnóides. Freud encontrou na amnésia deliberada de defesa uma segunda fonte, independente dos estados hipnóides, para a formação de complexos representativos que são excluídos do contato associativo. Mas ao aceitar essa ressalva, ainda sou de opinião que os estados hipnóides são a causa e a condição necessária de muitas, na realidade da maioria, das histerias grandes e complexas.
Antes de mais nada, é claro, devem-se enumerar entre os estados hipnóides as auto-hipnoses verdadeiras, que só se distinguem das hipnoses artificiais pelo fato de se originarem de modo espontâneo. Encontramo-las em grande número de histerias plenamente desenvolvidas, ocorrendo com variada freqüência e duração, e muitas vezes alternando-se rapidamente com estados de vigília normais (cf. Casos Clínicos 1 e 2). Em virtude da natureza quase onírica de seu conteúdo, muitas vezes merecem o nome de “delirium histericum”. O que acontece durante os estados auto-hipnóticos está sujeito à amnésia mais ou menos total na vida de vigília (ao passo que é completamente recordado na hipnose artificial). Os produtos psíquicos desses estados e as associações que se formaram neles são impedidos pela amnésia de qualquer correção durante o pensamento de vigília; e como na auto-hipnose a crítica e o controle provocados por outras idéias se reduzem, e em geral desaparecem quase por completo, os mais loucos delírios podem emergir dela intactos por longos períodos. Assim, quase só nesses estados é que surge uma “relação simbólica (um tanto irracional e complicada) entre a causa precipitante e o fenômeno patológico” | ver em [1]-[2]|, que, na verdade, muitas vezes se baseia nas mais absurdas semelhanças fonéticas e associações verbais. A ausência de crítica nos estados auto-hipnóticos explica por que deles surgem auto-sugestões com tanta freqüência – como, por exemplo, quando uma paralisia fica como seqüela após um ataque histérico. Mas – e isso talvez apenas se deva ao acaso – quase nunca deparamos, em nossas análises, com um exemplo de um fenômeno histérico que se tenha originado assim. Sempre a vimos acontecer, não menos na auto-hipnose do que fora dela, como resultado do mesmo processo – a saber, a conversão de uma excitação afetiva.
Seja como for, essa “conversão histérica” verifica-se mais facilmente na auto-hipnose do que no estado de vigília, do mesmo modo que as representações sugeridas se realizam fisicamente, como alucinações e movimentos, com muito mais facilidade na hipnose artificial. Não obstante, o processo de conversão da excitação é em essência idêntico ao descrito acima. Uma vez que tenha ocorrido, o fenômeno somático se repete se o afeto e a auto-hipnose ocorrerem simultaneamente. E nesse caso, é como se o estado hipnótico fosse evocado pelo próprio afeto. Por conseguinte, desde que haja uma alternância nítida entre a hipnose e a vida de vigília plena, o sintoma histérico permanece restrito ao estado hipnótico e é nele fortalecido pela repetição; além disso, a representação que lhe deu lugar fica isenta de correção pelos pensamentos de vigília e pela sua crítica, precisamente porque nunca emerge na vida lúcida de vigília.
Assim, com Anna O. (Caso Clínico 1), a contratura do braço direito, que se associava em sua auto-hipnose com o afeto de angústia e com a representação da cobra, permaneceu durante quatro meses restrita aos momentos durante os quais ela se encontrava num estado hipnótico (ou, se considerarmos esse termo inapropriado para as absences de duração muito curta, um estado hipnóide), embora se repetisse com freqüência. A mesma coisa aconteceu com outras conversões que se verificaram em seu estado hipnóide; e dessa forma, o grande complexo de fenômenos histéricos organizou-se num estado de completa latência e veio a revelar-se quando seu estado hipnóide se tornou permanente. | ver em [1] |Os fenômenos assim surgidos só emergem na consciência lúcida quando a divisão da mente, que examinarei depois, já foi concluída, e quando a alternância entre os estados de vigília e hipnose foi substituída por uma coexistência entre os complexos representativos normais e os hipnóides.
Será que existem estados hipnóides dessa natureza antes de o paciente adoecer? Como aparecem eles? Muito pouco posso dizer a respeito disso, pois afora o caso de Anna O., não dispomos de qualquer observação que possa lançar luz sobre esse ponto. Parece certo que, no caso dela, a auto-hipnose teve seu terreno preparado por devaneios habituais e foi plenamente estabelecida por um afeto de angústia prolongado, o qual, por si só, teria sido a base de um estado hipnóide. Não nos parece improvável que este processo seja válido de um modo bastante geral.
Uma grande variedade de estados conduz à “ausência da mente”, mas apenas alguns deles predispõem à auto-hipnose ou logo passam para ela. Sem dúvida, um investigador profundamente absorto num problema fica anestesiado até certo ponto, não formando qualquer percepção consciente de grandes grupos de suas sensações; e o mesmo se aplica a qualquer um que esteja usando ativamente sua imaginação criadora (cf. “o teatro particular” de Anna O. | ver em [1]|). Mas em tais estados, um intenso trabalho mental é executado e a excitação liberada pelo sistema nervoso é consumida nesse trabalho. Nos estados de distração e devaneio, por outro lado, a excitação intracerebral cai abaixo de seu nível lúcido de vigília. Esses estados bordejam a sonolência e se convertem em sono. Se, durante tal estado de absorção e enquanto o fluxo de representações é inibido, um grupo de representações de tonalidade afetiva estiver em ação, criará um alto nível de excitação intracerebral que não será consumida pelo trabalho mental e ficará à disposição do funcionamento anormal, como a conversão.
Assim, nem a “ausência da mente” durante o trabalho intenso, nem os estados crepusculares destituídos de emoção são patogênicos; por outro lado, os devaneios carregados de emoção e os estados de fadiga decorrentes de afetos prolongados são patogênicos. As ruminações de um homem cheio de preocupações, a angústia de uma pessoa que esteja velando à cabeceira de um doente que lhe é caro e os devaneios dos amantes são estados desta segunda natureza. A concentração no grupo afetivo de representações começa por produzir uma “ausência da mente”. O fluxo de representações torna-se gradualmente mais lento e, por fim, quase pára; mas a representação afetiva e seu afeto permanecem ativas e, por conseguinte, também a grande quantidade de excitação que não está sendo consumida funcionalmente. A semelhança entre essa situação e os determinantes da hipnose parece inconfundível. O indivíduo que vai ser hipnotizado não precisa realmente adormecer, isto é, sua excitação intracerebral não precisa mergulhar ao nível do sono; mas seu fluxo de representações deve ser inibido. Quando isso acontece, toda a massa de excitação fica à disposição da representação sugerida.
É dessa maneira que a auto-hipnose patogênica parece surgir em algumas pessoas – através da introdução de afeto num devaneio habitual. Essa talvez seja uma das razões por que, na anamnese da histeria, deparamos tão freqüentemente com os dois grandes fatores patogênicos de estar apaixonado e cuidar de doentes. No primeiro, os pensamentos saudosos do indivíduo sobre a pessoa amada ausente criam nele um estado de espírito “arrebatado”, fazem com que seu ambiente real se esmaeça e então levam seu pensamento a um estado de paralisação carregado de afeto; já no cuidar de doentes, a quietude pela qual o indivíduo se vê rodeado, sua concentração num objeto, sua atenção fixada na respiração do paciente – tudo isso garante precisamente as condições exigidas por muitas técnicas hipnóticas e enche o estado crepuscular assim produzido com o afeto de angústia. É possível que esses estados difiram apenas quantitativamente das auto-hipnoses verdadeiras e que se transformem nelas.
Uma vez que isso tenha acontecido, o estado semelhante à hipnose se repete muitas vezes ao surgirem as mesmas circunstâncias, e o indivíduo, em vez dos dois estados normais da mente, possui três: o estado de vigília, o de sono e o hipnóide. Verificamos que a mesma coisa acontece quando a hipnose artificial profunda é com freqüência provocada.
Não sei dizer se os estados hipnóticos espontâneos podem também ser gerados sem que haja a intervenção de um afeto dessa maneira, como resultado de uma predisposição inata, mas considero-o muito provável. Quando vemos a diferença de suscetibilidade à hipnose artificial tanto entre pessoas sadias como entre doentes, e vemos quão facilmente é provocada em algumas delas, parece razoável supor que em tais pessoas ela também possa aparecer de modo espontâneo. E talvez seja necessária uma predisposição para isso para que um devaneio possa transformar-se numa auto-hipnose. Estou, portanto, longe de atribuir a todos os pacientes histéricos o mecanismo gerador que nos foi ensinado por Anna O.
Refiro-me antes a estados hipnóides do que à hipnose em si porque é muito difícil estabelecer uma demarcação clara desses estados, que desempenham um papel tão importante na gênese da histeria. Não sabemos se os devaneios, descritos acima como estágios preliminares da auto-hipnose, não podem eles próprios ser capazes de produzir o mesmo efeito patológico que a auto-hipnose, e se os mesmos também não podem aplicar-se a um afeto prolongado de angústia. Por certo que isso se aplica ao medo. Visto que o medo inibe o fluxo de representações ao mesmo tempo em que uma representação afetiva (de perigo) está muito ativa, ele oferece um paralelo completo a um devaneio carregado de afeto; e uma vez que a lembrança da representação afetiva que sempre se renova, continua a estabelecer esse estado mental, passa a existir um “medo hipnóide” em que a conversão é promovida ou estabilizada. Temos aí o estágio de incubação da “histeria traumática” no sentido estrito da expressão.
Uma vez que há possibilidade de agrupar com a auto-hipnose estados mentais tão diferentes, embora compatíveis entre si nos aspectos mais importantes, parece desejável adotar a expressão “hipnóide”, que dá ênfase a essa semelhança interna. Ela resume o conceito, apresentado por Moebius no trecho citado anteriormente | ver em [1]-[2]|. Acima de tudo, porém, essa expressão aponta para a própria auto-hipnose, cuja importância na gênese dos fenômenos histéricos repousa no fato de que ela torna a conversão mais fácil e protege (pela amnésia) as representações convertidas de se desgastarem – proteção esta que acaba por levar a um aumento da divisão psíquica.
Quando um sintoma somático causado por uma representação é repetidamente desencadeado por ela, poderíamos esperar que os pacientes inteligentes e capazes de auto-observação ficassem conscientes da vinculação; eles saberiam por experiência que a manifestação somática aparecia ao mesmo tempo que a lembrança de um fato específico. O nexo causal subjacente, na verdade, é desconhecido deles; mas todos nós sempre sabemos qual é a representação que nos faz chorar, rir ou enrubescer, ainda que nãotenhamos a mais leve compreensão do mecanismo nervoso desses fenômenos ideogênicos. Algumas vezes os pacientes realmente observam a conexão e estão cônscios dela. Por exemplo, uma mulher pode dizer que seu ataque histérico branco (tremores e palpitação, talvez) provém de alguma grande perturbação emocional e se repete quando, e somente quando, algum fato faz com que ela se lembre disso. Mas este não é o caso com muitos ou, na verdade, com a maioria dos sintomas histéricos. Mesmo os pacientes inteligentes não estão cônscios de que seus sintomas surgem como resultado de uma representação e os consideram manifestações físicas independentes. Se fosse de outra forma, a teoria psíquica da histeria já teria alcançado uma idade respeitável.
Seria plausível acreditar que, embora os sintomas em questão fossem originalmente ideogênicos, a repetição deles os tornou, para usar o termo de Romberg |1840, 192|, “gravados” no corpo, e agora não mais se baseariam num processo psíquico, e sim em modificações no sistema nervoso ocorridas nesse meio tempo: ter-se-iam tornado sintomas independentes e genuinamente somáticos.
Esse conceito não é, em si mesmo, nem insustentável nem improvável. Mas creio que a nova luz que nossas observações lançaram sobre a teoria da histeria reside precisamente em ter ela demonstrado que essa visão é insuficiente para sustentar os fatos, pelo menos em muitos casos. Vimos que sintomas histéricos dos mais variados tipos, que datavam de muitos anos, “desapareciam imediata e permanentemente quando conseguíamos evocar com clareza a lembrança do fato que os havia provocado e despertar seu afeto concomitante, e quando a paciente havia descrito tal evento com os maiores detalhes possíveis e traduzira o afeto em palavras” | ver em [1]|. Os casos clínicos relatados nessas páginas fornecem algumas provas em apoio de tais asser-ções. “Podemos inverter a máxima ‘cessante causa cessat effectus‘ |’cessando a causa cessa o efeito’| e concluir dessas observações que o processo determinante” (isto é, a recordação dele) “continua a atuar durante anos – não indiretamente, através de uma cadeia de elos causais intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora – do mesmo modo que um sofrimento psíquico que é recordado na consciência de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito depois do acontecimento. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências” |p. [1]|. Mas se esse for o caso – se a lembrança do trauma psíquico tiver que ser considerada tão atuante quanto um agente contemporâneo, como um corpo estranho muito depois da sua entrada forçada, e se, não obstante, o paciente não tiver nenhuma consciência de tais lembranças ou do surgimento delas – então deveremos admitir que as representações inconscientes existem e são atuantes.
Além disso, quando chegamos a analisar os fenômenos histéricos, não encontramos apenas essas representações inconscientes em isolamento. Devemos reconhecer o fato de que na realidade, como foi demonstrado pelo valioso trabalho executado por pesquisadores franceses, grandes complexos de representações e processos psíquicos complicados e de importantes conseqüências permanecem inteiramente inconscientes num grande número de pacientes, e coexistem com a vida mental consciente: devemos reconhecer que há algo que se pode chamar de divisão da atividade psíquica, e que isso é de valor fundamental para nossa compreensão das histerias complicadas.
Talvez me seja permitido explorar bem mais amplamente essa região difícil e obscura. A necessidade de estabelecer o significado da terminologia aqui empregada talvez justifique, até certo ponto, a discussão teórica que se segue.
(5) REPRESENTAÇÕES INCONSCIENTES E REPRESENTAÇÕES INADMISSÍVEIS À CONSCIÊNCIA – DIVISÃO DA MENTE
Chamamos representações conscientes àquelas de que temos conhecimento. Existe nos seres humanos o fato estranho da consciência de si mesmo. Somos capazes de encarar e observar, como se fossem objetos, representações que surgem em nós e se sucedem umas às outras. Isso nem sempre acontece, uma vez que são raras as oportunidades de auto-observação. Mas a capacidade para isso está presente em cada um, pois todos podem dizer: “pensei nisto ou naquilo”. Descrevemos como conscientes as representações que observamos como ativas em nós, ou que assim observaríamos se prestássemos atenção a elas. Em qualquer momento específico do tempo há pouquíssimas delas; e se além dessas houver também outras representações presentes, teremos de chamá-las de representações inconscientes.
Não mais parece necessário argumentar em favor da existência de representações correntes que são inconscientes ou subconscientes. Elas se acham entre os fatos mais comuns na vida cotidiana. Caso me esqueça de fazer uma de minhas visitas médicas, terei sentimentos de viva inquietação. Sei por experiência o que significa essa sensação de que me esqueci de algo.Vasculho minhas lembranças em vão; não consigo descobrir a causa até que, subitamente, talvez algumas horas depois, ela entra em minha consciência. Mas estive inquieto o tempo todo. Por conseguinte, a representação da visita esteve todo o tempo atuante, isto é, presente, mas não em minha consciência. Ou então um homem atarefado se aborrece com alguma coisa em certa manhã. Fica inteiramente absorto em seu trabalho no escritório; enquanto o executa, seus pensamentos conscientes estão inteiramente ocupados e ele não pensa em seu aborrecimento. Mas suas decisões são influenciadas por ele e é bem possível que o sujeito diga “não” onde de outra forma diria “sim”. Portanto, apesar de tudo, essa lembrança é atuante, ou seja, está presente. Grande parte do que descrevemos como “estado de ânimo” provém de fontes dessa natureza, de representações que existem e estão atuantes abaixo do limiar da consciência. De fato, toda a conduta da nossa vida é constantemente influenciada por representações subconscientes. Podemos ver na vida cotidiana como, quando há degenerescência mental, como por exemplo nos estágios iniciais da paralisia geral, as inibições que normalmente restringem certas ações se tornam mais fracas e desaparecem. Mas o paciente que agora faz piadas indecentes na presença de mulheres não era, em seus dias de saúde, impedido de fazê-lo por lembranças e reflexões consciente; evitava-o “instintiva” e “automaticamente” – isto é, era refreado por representações que eram evocadas pelo impulso de comportar-se dessa forma, mas que permaneciam abaixo do limiar da consciência, embora, não obstante, inibissem o impulso. – Toda a atividade intuitiva é dirigida por representações que em grande medida são inconscientes, pois apenas as representações mais claras e mais intensas são percebidas pela consciência de si mesmo, enquanto a grande massa de representações correntes, porém mais fracas, permanece inconsciente.
As objeções que são levantadas contra a existência e a atuação das “representações inconscientes” parecem, na maior parte, ser um jogo de palavras. Sem dúvida, “representação” é uma palavra que pertence à terminologia do pensamento consciente, e “representação inconsciente” é portanto uma expressão autocontraditória. Mas o processo físico subjacente a uma representação é o mesmo no conteúdo e na forma (embora não em quantidade), quer a representação se eleve acima do limiar da consciência, quer permaneça abaixo dele. Bastaria construir uma expressão como “substrato representativo” para evitar a contradição e rebater a objeção.
Assim, não parece haver nenhuma dificuldade teórica em reconhecer também as representações inconscientes como causas dos fenômenos patológicos. Mas se entrarmos no assunto mais detidamente, encontraremos outras dificuldades. Em geral, quando a intensidade de uma representação inconsciente aumenta, ela penetra na consciência ipso facto. Só quando sua intensidade é leve é que ela permanece inconsciente. O que parece difícil de compreender é como uma representação pode ser suficientemente intensa para provocar um ato motor ativo, por exemplo, e ao mesmo tempo não ser intensa o bastante para tornar-se consciente.
Já mencionei |ver em. [1] | um conceito que talvez não deva ser descartado de imediato. De acordo com ele, a clareza de nossas representações, e conseqüentemente sua capacidade de serem observadas por nossa autoconsciência – isto é, de serem conscientes – é determinada, entre outras coisas, pelas sensações de prazer ou desprazer que desperta, por sua carga de afeto. Quando uma representação produz imediatamente nítidas conseqüências somáticas, isso implica que a excitação engendrada por ela escoou-se pelas vias implicadas nessas conseqüências, em vez de difundir-se no cérebro, e precisamente porque essa representação tem conseqüências físicas, porque suas somas de estímulos psíquicos são “convertidas” em estímulos somáticos, ela perde a clareza que de outra forma a teria destacado na corrente de representações. Em vez disso, perde-se entre as demais.
Suponhamos, por exemplo, que alguém tenha experimentado um afeto violento durante uma refeição e não o tenha “ab-reagido”. Ao tentar comer, mais tarde, ele é dominado por engasgos e vômitos e estes lhe parecem sintomas puramente somáticos. Seus vômitos histéricos continuam por tempo considerável. Desaparecem depois que o afeto é revivido, descrito e tornado alvo de reação por parte do paciente sob hipnose. Não há dúvida de que cada tentativa de comer evocava a lembrança em causa. Essa lembrança deu origem aos vômitos, mas não surgiu claramente na consciência, pois estava então destituída do afeto, enquanto os vômitos absorviam a atenção inteiramente.
É concebível que a razão que acaba de ser dada explique por que algumas idéias que liberam fenômenos histéricos não sejam reconhecidas como suas causas. Mas essa razão – o fato de as representações que perderam seu afeto, por terem sido convertidas, passarem despercebidas – não tem possibilidade de explicar por que, em outros casos, complexos representativos que são tudo, menos desprovidos de afeto, não entram na consciência. Numerosos exemplos disso são encontrados em nossos casos clínicos.
Em tais pacientes verificamos que a norma era a perturbação emocional – apreensão, irritabilidade raivosa, tristeza – preceder o aparecimento do sintoma somático ou segui-lo imediatamente, e aumentar até ser dissipada através de sua expressão em palavras, ou até que o afeto e a manifestação somática tornassem a desaparecer gradativamente. Quando ocorria o primeiro caso, a qualidade do afeto sempre se tornava perfeitamente compreensível, embora sua intensidade não pudesse deixar de parecer, aos olhos de uma pessoa normal (e do próprio paciente, depois de ter sido esclarecida), totalmente desproporcional. Essas eram, portanto, representações intensas o bastante não apenas para causar fortes fenômenos somáticos, como também para evocar o afeto apropriado e influenciar o curso da associação, dando destaque a representações afins – mas que, apesar de tudo isso, permaneciam elas próprias fora da consciência. Para trazê-las à consciência, a hipnose se fazia necessária (como nos Casos Clínicos 1 e 2), ou (como nos Casos 4 e 5) era preciso empreender uma busca trabalhosa com a ajuda esforçada do médico.
Representações tais como essas, que, embora presentes, são inconscientes, não por causa de seu grau relativamente pequeno de nitidez, mas apesar de sua grande intensidade, podem ser descritas como representações que são “inadmissíveis à consciência”.
A existência desse tipo de representações inadmissíveis à consciência é patológica. Nas pessoas normais, todas as representações que podem tornar-se presentes também penetram na consciência, desde que sejam suficientemente intensas. Em nossos pacientes encontramos um grande complexo de representações admissíveis à consciência coexistindo com um complexo menor de representações que não o são. Neles, portanto, o campo da atividade psíquica representativa não coincide com a consciência potencial. Esta última é mais restrita que a primeira. A atividade psíquica representativa dessas pessoas divide-se numa parte consciente e noutra inconsciente, e suas representações se dividem em algumas que são admissíveis e algumas que são inadmissíveis à consciência. Não podemos, portanto, falar numa divisão da consciência, embora possamos mencionar uma divisão da mente.
Inversamente, essas representações subconscientes não podem ser influenciadas ou corrigidas pelo pensamento consciente. Com muita freqüência elas se referem a experiências que, entrementes, perderam seu significado – o pavor de fatos que não ocorreram, o susto que se transformou em riso ou alegria após um salvamento. Tais desenvolvimentos subseqüentes privam a memória de todo o seu afeto no que tange à consciência, mas deixam inteiramente intacta a representação subconsciente que provoca fenômenos somáticos.
Talvez me seja permitido citar outro exemplo. Uma jovem mulher casada ficou, por algum tempo, muito preocupada com o futuro de sua irmã mais moça. Como resultado disso, sua menstruação, normalmente regular, passou a durar duas semanas. Ela ficou com o hipogástrico esquerdo sensível e por duas vezes se descobriu deitada no chão, rígida, voltando a si de um “desmaio”. Seguiu-se uma nevralgia ovariana do lado esquerdo, com sinais de peritonite aguda. A ausência de febre e uma contratura da perna esquerda (e das costas) indicaram que a moléstia era uma pseudo-peritonite; e quando alguns anos depois a paciente faleceu, e se procedeu à autópsia, tudo o que se encontrou foi uma “degeneração microcística” de ambos os ovários, sem quaisquer vestígios de uma antiga peritonite. Os sintomas agudos foram desaparecendo aos poucos e deixaram atrás de si uma nevralgia ovariana, uma contratura dos músculos das costas, de modo que seu tronco ficara rijo como uma tábua, e uma contratura da perna esquerda. Esta última foi eliminada sob hipnose por sugestão direta. A contratura das costas não foi afetada por isso. Entrementes, as dificuldades da irmã mais moça tinham sido inteiramente dissipadas e todos os seus temores baseados nelas desapareceram. Mas os fenômenos histéricos, que só poderiam ter-se originado delas, permaneceram inalterados. Era tentador presumir que aquilo com que nos defrontávamos eram modificações da inervação, que teriam assumido um status independente e não mais estariam vinculadas à representação que as havia causado. Mas depois de a paciente ter sido obrigada a narrar, sob hipnose, toda a história até a época em que adoecera de “peritonite” – o que fez muito a contragosto – ela logo sentou-se aprumada na cama, sem ajuda, e as contraturas das costas desapareceram para sempre. (A nevralgia ovariana, que sem dúvida era de origem muito antiga, permaneceu inalterada.) Assim, vemos que sua representação patogênica angustiada continuara a agir ativamente por meses a fio e fora totalmente inacessível a qualquer correção pelos acontecimentos reais.
Se formos obrigados a reconhecer a existência de complexos representativos que jamais penetram na consciência e não são influenciados pelo pensamento consciente, teremos admitido que, mesmo em casos tão simples de histeria como o que acabo de descrever, há uma divisão da mente em duas partes relativamente independentes. Não afirmo que tudo o que denominamos de histérico apresente tal divisão como sua base e condição necessária; mas de fato assevero que “a divisão da atividade psíquica que é tão marcante nos casos famosos sob a forma de ‘double conscience‘ encontra-se presente, em grau rudimentar, em toda grande histeria”, e que “a disposição e tendência a essa dissociação constitui o fenômeno básico dessa neurose”.
Mas antes de examinarmos este assunto, devo acrescentar um comentário quanto às representações inconscientes que produzem efeitos somáticos. Muitos fenômenos histéricos duram continuamente por muito tempo, como a contratura no caso antes descrito. Será que devemos e podemos supor que, por todo esse tempo, a representação causativa está perpetuamente em ação e se acha presente na atualidade? Penso que sim. É verdade que nas pessoas sadias vemos a atividade psíquica processar-se concomitantemente a uma rápida mudança de idéias. Mas encontramos portadores de melancolia grave imersos, por longos períodos, numa mesma representação aflitiva, que está perpetuamente ativa e presente. Na verdade, podemos muito bem acreditar que mesmo quando uma pessoa sadia tem uma grande preocupação em sua mente, esta se faz presente o tempo todo, uma vez que tal preocupação domina a expressão facial mesmo quando a consciência está repleta de outros pensamentos. Mas a parcela da atividade psíquica que é isolada nas pessoas histéricas, e na qual costumamos pensar como estando repleta de representações inconscientes, encerra, em geral, uma dose tão pequena destas e é tão inacessível ao intercâmbio com as impressões externas que é fácil acreditar que uma representação única possa estar permanentemente ativa na mente.
Se nos parece, como ocorre com Binet e Janet, que o que se acha no centro da histeria é uma expulsão de parte da atividade psíquica, temos o dever de ser tão claros quanto possível sobre este assunto. É fácil demais cairmos num hábito de pensamento que pressupunha que todo substantivo tem por detrás uma substância – um hábito que pouco a pouco passa a considerar a “consciência” como representando uma coisa real; e quando nos acostumamos a fazer uso das relações espaciais metaforicamente como no termo “subconsciente”, verificamos, à medida que o tempo passa, que na verdade formamos uma representação que perdeu sua natureza metafórica e que podemos com facilidade manipular como se fosse real. Nossa mitologia torna-se então completa.
Todo o nosso pensamento tende a se fazer acompanhar e ajudar por representações espaciais, e nos expressamos através de metáforas espaciais. Assim, quando falamos de representações que se encontram na região da consciência lúcida e de representações inconscientes que jamais penetram na plena luz da consciência de si mesmo, quase inevitavelmente formamos quadros de uma árvore com o tronco à luz do dia e as raízes na escuridão, ou de um edifício com seus escuros porões subterrâneos. Se, contudo, tivermos sempre em mente que todas essas relações espaciais são metafóricas, e não nos deixarmos iludir pela suposição de que essas relações se acham literalmente presentes no cérebro, poderemos, não obstante, falar numa consciência e num subconsciente. Mas só nessa condição.
Estaremos livres do perigo de nos deixarmos enganar por nossas próprias figuras de linguagem se sempre nos lembrarmos de que, afinal de contas, é no mesmo cérebro, e muito provavelmente no mesmo córtex cerebral, que as representações conscientes e inconscientes têm sua origem. Como isso é possível não sabemos dizer. Por outro lado, sabemos tão pouco sobre a atividade psíquica do córtex cerebral que mais uma complicação enigmática quase não chega a aumentar nossa ignorância sem limites. Devemos aceitar como um fato que, nos pacientes histéricos, parte de sua atividade psíquica é inacessível à percepção pela autoconsciência do indivíduo desperto e que a mente deles é assim dividida.
Um exemplo universalmente conhecido de uma divisão de atividade psíquica como essa pode ser visto nos ataques histéricos, em algumas de suas formas e fases. No início deles, o pensamento consciente muitas vezes se extingue, mas depois gradualmente desperta. Muitos pacientes inteligentes admitem que seu eu consciente estava bem lúcido durante o ataque e contemplava com curiosidade e surpresa todas as coisas loucas que eles faziam e diziam. Esses pacientes têm, além disso, a crença (errônea) de que, com um pouco de boa vontade, poderiam ter inibido o ataque, e mostram-se inclinados a culpar-se por isso. “Não precisavam ter-se comportado assim.” (Suas autocensuras por se sentirem culpados de simulação também se baseiam, em grande medida, nesse sentimento.) Mas quando sobrevém outro ataque, o eu consciente é tão incapaz de controlá-lo como nos anteriores. – Temos aqui uma situação na qual o pensamento e a representação do eu consciente e desperto encontram-se lado a lado com representações que normalmente residem nas trevas do inconsciente, mas que agora adquiriram controle sobre o aparelho muscular e sobre a fala e, na realidade, até mesmo sobre grande parte da própria atividade representativa: a divisão da mente é manifesta.
Talvez se possa observar que as descobertas de Binet e Janet merecem ser descritas como uma divisão não só da atividade psíquica, mas da consciência. Como sabemos, esses observadores conseguiram entrar em contato com o “subconsciente” de seus pacientes, com a parcela da atividade psíquica da qual o eu consciente e desperto nada sabe, e puderam, em alguns de seus casos, demonstrar a presença de todas as funções psíquicas, inclusive a autoconsciência, nessa parte da mente, uma vez que ela tem acesso à lembrança de fatos psíquicos anteriores. Essa metade da mente é, portanto, bastante completa e consciente em si mesma. Em nossos casos, a parte dividida da mente é “lançada nas trevas”, como os Titãs aprisionados na cratera do Etna, que podem abalar a terra, mais jamais emergirem à luz do dia. Nos casos de Janet, a divisão do domínio da mente foi total. Não obstante, existe ainda uma desigualdade de status. Mas também esta desaparece quando as duas metades da consciência se alternam, como fazem nos célebres casos de double conscience, e quando não diferem em sua capacidade funcional.
Mas voltemos às representações que indicamos em nossos pacientes como as causas de seus fenômenos histéricos. Está longe de ser possível para nós descrever todas elas com sendo “inconscientes” e “inadmissíveis à consciência”. Elas formam uma escala quase ininterrupta, passando por todas as gradações da indefinição e obscuridade, entre as representações perfeitamente conscientes que liberam um reflexo inusitado e aquelas que jamais entram na consciência na vida de vigília, a não ser na hipnose. Apesar disso, consideramos estabelecido que uma divisão da atividade psíquica ocorre nos graus mais graves da histeria e que só ela parece tornar possível uma teoria psíquica da doença.
Que, então, pode ser asseverado ou suspeitado com probabilidade sobre as causas e a origem desse fenômeno?
Janet, a quem a teoria da histeria tanto deve e com quem estamos em concordância na maioria dos aspectos, externou uma opinião sobre esse ponto que não podemos aceitar.
O conceito de Janet é o seguinte. Considera ele que a “divisão de uma personalidade” repousa numa insuficiência psicológica inata (“insuffisance psychologique”). Toda atividade mental normal pressupõe certa capacidade de “síntese”, a capacidade de unir várias representações num complexo. A combinação das várias percepções sensoriais num quadro do ambiente já é uma atividade sintética dessa natureza. Verifica-se que essa função mental está muito abaixo do normal nos pacientes histéricos. Quando a atenção de uma pessoa normal é dirigida tão plenamente quanto possível para algum ponto, por exemplo, para uma percepção por um único sentido, é verdade que ela perde temporariamente a capacidade de aperceber impressões provenientes dos outros sentidos – ou seja, de absorvê-las em seu pensamento consciente. Mas nos indivíduos histéricos isso acontece sem qualquer concentração especial da atenção. Logo que percebem qualquer coisa, eles se tornam inacessíveis a outras percepções sensoriais. De fato, sequer estão em condições de receber em conjunto diversas impressões decorrentes de um único sentido. Podem, por exemplo, aperceber-se apenas de sensações táteis em um lado do corpo; as que são oriundas do outro lado alcançam o centro e são utilizadas para a coordenação do movimento, mas não são apercebidas. Uma pessoa assim é hemianestésica. Nas pessoas normais, uma representação atrai para a consciência um grande número de outras, por associação; estas podem relacionar-se com a primeira, por exemplo, de maneira confirmatória ou inibitória, e apenas as representações mais nítidas têm tamanho poder que suas associações permanecem abaixo do limiar da consciência. Nas pessoas histéricas isso sempre acontece. Cada representação apodera-se de toda a sua limitada atividade mental, e isso explica sua afetividade excessiva. Essa característica da mente delas é descrita por Janet como a “restrição do campo da consciência”, nos pacientes histéricos, por analogia com a “restrição do campo da visão”. Em sua maior parte, as impressões sensoriais que não são apercebidas e as representações que são despertadas, mas não entram na consciência, cessam sem produzir outras conseqüências. Contudo, elas às vezes se acumulam e formam complexos – camadas mentais retiradas da consciência; formam uma subconsciência.
A histeria, que se baseia essencialmente nessa divisão da mente, é uma“maladie par faiblesse” |“doença causada pela fraqueza”|, e eis por que se desenvolve mais depressa quando uma mente fraca por natureza é submetida a influências que a enfraquecem ainda mais, ou se defronta com exigências fortes em relação às quais sua debilidade se destaca ainda mais.
As opiniões de Janet, resumidas dessa forma, dão de antemão sua resposta à importante questão sobre a predisposição para a histeria – sobre a natureza do typus hystericus (tomando a expressão no sentido pelo qual nos referimos a um typus phthisicus, pelo que compreendemos o tórax estreito e longo, o coração pequeno, etc.). Janet considera que a predisposição à histeria é uma forma particular de debilidade mental congênita. Em resposta, gostaríamos de formular em breves linhas nosso conceito, como se segue. Não é uma questão de a divisão da consciência ocorrer porque os pacientes têm a mente fraca; eles parecem ter a mente fraca porque sua atividade mental está dividida e apenas parte de sua capacidade se acha à disposição do seu pensamento consciente. Não podemos considerar a fraqueza mental como o typus hystericus, como a essência da predisposição à histeria.
Um exemplo esclarece o que se pretende dizer com a primeira dessas duas frases. Pudemos observar muitas vezes a seguinte evolução dos acontecimentos com uma de nossas pacientes (Sra. Caecilie M.). Quando ela se sentia relativamente bem, surgia um sintoma histérico – uma alucinação torturante e obsessiva, uma nevralgia ou coisa semelhante – que, durante algum tempo, aumentava de intensidade. Simultaneamente, a capacidade mental da paciente decrescia de forma contínua e, após alguns dias, qualquer observador não-iniciado seria levado a dizer que a mente dela era fraca. Em seguida, ela era aliviada da representação inconsciente (a lembrança de um trauma psíquico, muitas vezes pertencente ao passado remoto), quer pelo médico, sob hipnose, quer pelo fato de ela descrever de súbito o evento, num estado de agitação e com o acompanhamento de ativa emoção. Depois que isso acontecia, ela não só ficava tranqüila, alegre e livre do sintoma torturante, como era sempre espantoso observar a amplitude e a lucidez de seu intelecto, bem como a agudeza de sua compreensão e julgamento. O xadrez, que ela jogava muito bem, era uma de suas ocupações favoritas, e ela gostava de jogar duas partidas de cada vez, o que se poderia dificilmente considerar indicativo de falta de síntese mental. Era impossível fugir à impressão de que, durante uma evolução de acontecimentos como o que acabamos de descrever, a representação inconsciente atraía para si própria uma parcela sempre crescente da atividade psíquica da paciente e que, quanto mais isso acontecia, menor se tornava o papel desempenhado pelo pensamento consciente, até ficar reduzido à imbecilidade total; mas que, para empregarmos a expressão vienense notavelmente adequada, quando ela estava “beisammen” |literalmente, “reunida”, significando “eu seu juízo perfeito”|, possuía poderes mentais bem marcantes.
Como um estado comparável nas pessoas normais poderíamos mencionar não a concentração da atenção, mas a preocupação. Quando alguém está “preocupado” com alguma nítida representação, como um aborrecimento, sua capacidade mental fica similarmente reduzida.
Todo observador é basicamente influenciado por seus objetos de observação, e estamos inclinados a crer que os conceitos de Janet formaram-se principalmente na evolução de um estudo detalhado dos pacientes histéricos oligofrênicos que costumam ser encontrados nos hospitais e instituições, por não terem conseguido levar sua própria vida em virtude de sua doença e da fraqueza mental por ela provocada. Nossas próprias observações, levadas a efeito em pacientes histéricos instruídos, forçaram-nos a adotar uma visão essencialmente diferente de suas mentes. Em nossa opinião, “entre os histéricos podem-se encontrar pessoas da mais lúcida inteligência, da maior força de vontade, do melhor caráter e da mais elevada capacidade crítica” | ver em [1]|. Nenhuma parcela de uma dotação mental sólida e autêntica é excluída pela histeria, embora as realizações efetivas com freqüência se tornem impossíveis por causa da doença. Afinal, a padroeira da histeria, Santa Teresa, era uma mulher de gênio com grande capacidade prática.
Mas por outro lado, nenhum grau de sandice, incompetência e fraqueza de vontade constitui proteção contra a histeria. Mesmo que desprezemos o que é meramente um resultado da doença, devemos reconhecer o tipo de histérico oligofrênico como um tipo comum. Mesmo assim, entretanto, o que encontramos aí não é a estupidez embotada e fleumática, mas um grau excessivo de mobilidade mental que leva à ineficiência. Examinarei posteriormente a questão da predisposição inata. Aqui, proponho apenas demonstrar que a opinião de Janet de que a fraqueza mental está de algum modo na raiz da histeria e de que a divisão da mente é insustentável.
Em total oposição aos conceitos de Janet, creio que, num grande número de casos, o que está subjacente à dissociação é um excesso de eficiência, a coexistência habitual de duas seqüências de representações heterogêneas. Tem-se ressaltado com freqüência que, muitas vezes, não estamos apenas “mecanicamente” ativos enquanto nosso pensamento consciente se acha ocupado com cadeias de representações que nada têm em comum com nossa atividade, mas que somos também capazes do que é, sem dúvida, um funcionamento psíquico, enquanto nossos pensamentos estão “ocupados em outro lugar” como, por exemplo, quando lemos em voz alta corretamente e com entonação adequada, mas depois não temos a menor idéia do que estivemos lendo.
Há sem dúvida inúmeras atividades, desde as mecânicas, como tricotar ou tocar escalas, até algumas que exigem no mínimo um pequeno grau de funcionamento mental, que são todas realizadas por muitas pessoas com apenas parte da mente concentrada nelas. Isso se aplica especialmente às pessoas dotadas de disposição muito ativa, para as quais uma ocupação monótona, simples e desinteressante constitui uma tortura, e que na realidade começam deliberadamente a se divertir pensando em algo diferente (cf. o “teatro particular” de Anna O. | ver em [1]|. Outra situação semelhante, ocorre quando um grupo interessante de representações, oriundo por exemplo de livros ou peças, impõe-se à atenção do sujeito e se intromete em seus pensamentos. Essa intromissão é ainda mais vigorosa quando o grupo estranho de representações tem uma intensa tonalidade afetiva (por exemplo, a aflição ou a saudade da pessoa amada). Temos então o estado de preocupação a que aludi acima, o qual, não obstante, não impede muitas pessoas de executarem ações bastante complicadas. As situações sociais muitas vezes exigem uma duplicação dessa espécie, mesmo quando os pensamentos em jogo são de natureza dominadora – como, por exemplo, quando uma mulher que lutando com uma extrema preocupação ou uma excitação inflamada desempenha seus deveres sociais e as funções de afável anfitriã. Todos nós conseguimos apenas realizações desse tipo no decurso de nosso trabalho, e a auto-observação parece sempre demonstrar que o grupo de representações afetivas não é meramente despertado de quando em vez pela associação, mas está presente todo o tempo na mente e penetra na consciência, a menos que esta esteja tomada por alguma impressão externa ou ato de vontade.
Mesmo nas pessoas que têm o costume de não permitirem que sua mente seja perpassada por devaneios paralelos a sua atividade habitual, certas situações dão margem, durante consideráveis períodos de tempo, a essa existência simultânea de impressões e reações mutáveis da vida externa, por um lado, e de um grupo de representações coloridas de afeto, por outro. Post equitem sedet atra cura |“atrás do cavaleiro senta-se a negra preocupação”|. Entre essas situações, as mais marcantes são a de cuidar de alguém que nos é caro e a de estar apaixonado. A experiência mostra que o cuidar de doentese os afetos sexuais também desempenham o papel principal na maioria dos casos de pacientes histéricos analisados mais detidamente.
Suspeito que a duplicação do funcionamento psíquico, quer seja habitual, quer provocada por situações emocionais da vida, atue como uma predisposição apreciável para uma divisão patológica autêntica da mente. Essa duplicação passa para o segundo estado quando o conteúdo dos dois grupos de representações coexistentes deixa de ser da mesma espécie, quando um deles encerra representações que são inadmissíveis à consciência – ou seja, que foram repelidas ou surgiram de estados hipnóides. Quando isto ocorre, é impossível para as duas correntes temporariamente divididas voltarem a se reunir, como acontece com freqüência nas pessoas sadias, e uma região da atividade psíquica inconsciente é dividida de forma permanente. Essa cisão histérica da mente está para o “duplo eu” assim como o estado hipnóide está para um devaneio normal. Neste segundo contraste, o que determina a qualidade patológica é a amnésia, e no primeiro, o que a determina é a inadmissibilidade das representações à consciência.
Nosso primeiro caso clínico, o de Anna O., a que sou obrigado a estar sempre recorrendo, proporciona uma compreensão nítida do que acontece. Essa moça tinha o hábito, enquanto gozava de perfeita saúde, de permitir que seqüências de representações imaginativas lhe passassem pela mente durante suas ocupações corriqueiras. Enquanto se encontrava numa situação que favorecia a auto-hipnose, o afeto de angústia penetrou em seu devaneio e criou um estado hipnóide em relação ao qual ela teve amnésia. Isso se repetiu em diversas ocasiões e seu conteúdo representativo foi-se tornando cada vez mais rico, mas continuou a se alternar com estados de pensamento de vigília inteiramente normais. Após quatro meses, o estado hipnóide assumiu pleno controle da paciente. Os ataques isolados esbarraram uns nos outros e assim surgiu um état de mal, uma histeria aguda do tipo mais grave. Este durou vários meses sob diversas formas (o período de sonambulismo); foi então interrompido à força | ver em [1]| e, a partir daí, voltou a se alternar com o comportamento psíquico normal. Mesmo durante seu comportamento normal, porém, havia uma persistência de fenômenos somáticos e psíquicos (contraturas, hemianestesia e alterações da fala) a respeito dos quais, neste caso, sabemos com certeza que se baseavam em representações pertinentes ao estado hipnóide. Isso prova que, mesmo durante seu comportamento normal, o complexo representativo pertencente ao estado hipnóide, a “subconsciência”, estava atuante, e que a divisão em sua mente persistia.
Não disponho de um segundo exemplo a oferecer de um curso evolutivo semelhante. Penso, contudo, que o caso lança alguma luz também sobre o desenvolvimento das neuroses traumáticas. Durante os primeiros dias após o fato traumático, o estado de pavor hipnóide repete-se a cada vez que o fato é relembrado. Enquanto esse estado se repete com freqüência cada vez maior, sua intensidade vai diminuindo tanto que ele não mais se alterna com o pensamento de vigília, mas apenas coexiste com ele. Torna-se então contínuo, e os sintomas somáticos, que antes só se faziam presentes durante o ataque de pavor, adquirem existência permanente. Todavia, posso apenas suspeitar de que seja isso o que acontece, já que nunca analisei um caso dessa natureza.
As observações e as análises de Freud revelam que a divisão da mente também pode ser causada pela “defesa”, pelo desvio deliberado da consciência das representações aflitivas: mas só em algumas pessoas, às quais, portanto, devemos atribuir uma idiossincrasia mental. Nas pessoas normais, tais representações ou são suprimidas com êxito, e nesse caso desaparecem por completo, ou não o são, e nesse caso continuam a surgir na consciência. Não sei dizer qual é a natureza dessa idiossincrasia. Arrisco-me apenas a sugerir que o auxílio do estado hipnóide é necessário para que a defesa resulte não meramente na transformação de representações convertidas isoladas em representações inconscientes, mas numa autêntica divisão da mente. A auto-hipnose, por assim dizer, terá criado o espaço ou região da atividade psíquica inconsciente para o qual são dirigidas as representações rechaçadas. Seja como for, porém, a realidade da significância patogênica da “defesa” é um fato que devemos reconhecer.
Não penso, entretanto, que a gênese da divisão da mente sequer seja abarcada pelos processos incompletamente compreendidos que vimos discutindo. Assim, em suas fases iniciais, as histerias de grau severo costumam exibir por algum tempo uma síndrome que pode ser descrita como de histeria aguda. (Na anamnese dos casos masculinos de histeria em geral nos defrontamos com uma representação dessa forma de doença como “encefalite”; nos casos femininos, a nevralgia ovariana leva a um diagnóstico de “peritonite”.) Nesse estágio agudo da histeria, os traços psicóticos são muito distintos, tais como estados de excitação maníacos e coléricos, fenômenos histéricos que se transformam rapidamente, alucinações e assim por diante. Em tais estados, a divisão da mente talvez ocorra de maneira diferente da que tentamos descrever acima. Talvez todo esse estágio deva ser encarado como um longo estado hipnóide cujos resíduos fornecem o núcleo do complexo representativo inconsciente, enquanto o pensamento de vigília é amnésico quanto a ele. Visto que na maioria das vezes ignoramos as causas que levam a uma histeria aguda dessa natureza (não me arrisco a considerar o curso dos acontecimentos observados em Anna O. como tendo aplicação geral), parece haver outra espécie de divisão psíquica que, em contraste com as examinadas acima, poderia ser denominada de irracional. E sem dúvida ainda existem outras formas desse processo, que ainda se acham ocultas de nossa jovem ciência psicológica, pois é certo que demos apenas os primeiros passos nesse setor do conhecimento e nossos conceitos atuais serão substancialmente alterados por outras observações.
Perguntemo-nos agora qual o resultado que o conhecimento da divisão da mente alcançado nos últimos anos trouxe para a compreensão da histeria. Parece ter sido grande em quantidade e importância.
Tais descobertas possibilitaram, em primeiro lugar, que o que parece serem sintomas puramente somáticos fosse relacionado com representações, as quais, contudo, não podem ser descobertas na consciência dos pacientes. (É desnecessário abordar isso novamente.) Em segundo lugar, ensinaram-nos a compreender os ataques histéricos, pelo menos em parte, como sendo produtos de um complexo representativo inconsciente. (Cf. Charcot.) Mas, além disso, explicaram também algumas das características psíquicas da histeria, e este ponto talvez mereça um exame mais pormenorizado.
É verdade que as “representações inconscientes” jamais, ou só raramente e com dificuldade, penetram no pensamento de vigília; mas elas o influenciam. Fazem-no, em primeiro lugar, através de suas conseqüências – quando, por exemplo, um paciente é atormentado por uma alucinação que é totalmente ininteligível e absurda, mas cujo significado e motivação tornam-se claros sob hipnose. Além disso, influenciam a associação, tornando certas representações mais nítidas do que teriam sido caso não fossem assim reforçadas a partir do inconsciente. Dessa maneira, alguns grupos específicos de representações impõem-se constantemente ao paciente com certo grau de compulsão e ele é obrigado a pensar neles. (O caso é semelhante aos dos pacientes semi-anestésicos de Janet. Quando sua mão anestésica é repetidamente tocada, eles não sentem nada, mas quando lhes mandam indicar um número qualquer a seu gosto, eles sempre escolhem o que corresponde ao número de vezes que foram tocados.) Por outro lado, as representações inconscientes regem o tônus emocional do paciente, seu estado de espírito. Quando, no curso do desenrolar de suas lembranças, Anna O. abordava umfato que em sua origem estivera ligado a um afeto nítido o sentimento correspondente surgia com vários dias de antecedência e antes que a lembrança aparecesse claramente, mesmo em sua consciência hipnótica.
Isso torna inteligíveis os “estados de ânimo” dos pacientes – suas alterações inexplicáveis e desarrazoadas de humor, que parecem ao pensamento de vigília ocorrer sem motivo. Com efeito, a impressionabilidade dos pacientes histéricos é determinada, em grande parte, simplesmente por sua excitabilidade inata; mas os afetos nítidos em que eles são lançados por causas relativamente triviais ficam mais inteligíveis ao considerarmos que a “parte dividida da mente” reage como uma caixa de ressonância à nota de um diapasão. Qualquer acontecimento que provoque lembranças inconscientes libera toda a força afetiva dessas representações que não sofreram desgaste, e o afeto evocado fica então inteiramente desproporcional a qualquer um que surgisse apenas na mente consciente.
Referi-me antes (ver em [1]) a uma paciente cujo funcionamento psíquico estava sempre na razão inversa da nitidez de suas representações inconscientes. A diminuição de seu pensamento consciente baseava-se, em parte, mas apenas em parte, numa espécie peculiar de abstração. Após cada uma de suas “absences” momentâneas – e estas sempre ocorriam – ela não sabia em que havia pensado no curso dela. Oscilava entre suas “conditions primes” e “secondes”, entre os complexos representativos conscientes e inconscientes. Mas não era apenas por isso que seu funcionamento psíquico se via reduzido, nem por causa do afeto que a dominava a partir do inconsciente. Enquanto se encontrava nesse estado, seu pensamento de vigília ficava sem energia, seu julgamento era infantil e ela parecia, como já tive ocasião de dizer, positivamente imbecil. Creio que isso se devia ao fato de que o pensamento de vigília dispõe de menos energia quando uma grande quantidade de excitação psíquica é apropriada pelo inconsciente.
Quando este estado de coisas não é apenas temporário, quando a parte dividida da mente está num constante estado de excitação, como ocorria com os pacientes hemianestésicos de Janet – nos quais, além disso, todas as sensações em nada menos da metade do corpo só eram percebidas pela mente inconsciente – quando este é o caso, resta tão pouco funcionamento cerebral para o pensamento de vigília que a debilidade mental que Janet descreve e considera inata fica plenamente explicada. São pouquíssimas as pessoas de quem se pode dizer, como do Bertrand de Born, de Uhland, que nunca precisam de mais da metade de sua mente.1 Tal redução da energia psíquica realmente transforma a maioria das pessoas em débeis mentais.
Essa debilidade mental, causada por uma divisão da psique, também parece ser a base de uma notável característica de alguns pacientes histéricos – sua sugestionabilidade. (Digo “alguns” por ser certo que entre os pacientes histéricos também se encontram pessoas do julgamento mais sensato e mais crítico.)
Por sugestionabilidade entendemos, em primeiro lugar, apenas uma incapacidade de criticar as representações e complexos de representações (julgamentos) que emergem na própria consciência do sujeito, ou são nela introduzidos de fora através da palavra falada ou da leitura. Qualquer crítica dessas representações recém-chegadas na consciência baseia-se no fato de elas despertarem outras representações por associação, e entre estas algumas que são irreconciliáveis com as novas. A resistência a estas últimas fica assim na dependência do acervo de representações antagônicas na consciência potencial, e a intensidade da resistência corresponde à proporção entre a nitidez das novas representações e a das despertadas na memória. Mesmo nos intelectos normais essa proporção é muito variada. O que descrevemos como um temperamento intelectual depende dela em larga medida. Um homem “sangüíneo” sempre se delicia com novas pessoas e coisas, e isso sem dúvida ocorre porque a intensidade de suas imagens mnêmicas é menor em comparação com a das novas impressões num homem mais tranqüilo e “fleumático”. Nos estados patológicos a preponderância de novas representações e a falta de resistência a elas aumentam em proporção à escassez das imagens mnêmicas despertadas – isto é, proporcionalmente à pobreza e à debilidade de seus poderes associativos. Isso já é o que acontece no sono e nos sonhos, na hipnose e sempre que há uma redução da energia mental, desde que esta não reduza também a nitidez das novas representações.
A parte inconsciente expelida pela mente na histeria é sobretudo sugestionável, em virtude da pobreza e incompletude de seu conteúdo representativo. Mas em alguns pacientes histéricos também a sugestionabilidade da mente consciente parece basear-se nisso. Eles são excitáveis por causa de sua predisposição inata; neles, as representações novas são muito nítidas. Em contraste com isso, sua atividade intelectual propriamente dita, sua função associativa, é reduzida, porque apenas parte de sua energia psíquica se acha à disposição de seu pensamento de vigília, em virtude da cisão de um “inconsciente”. Como resultado disso, seu poder de resistência tanto às auto-sugestões como às alo-sugestões se vê reduzido e por vezes abolido. A sugestionabilidade de sua vontade também parece dever-se apenas a isso. Por outro lado, a sugestionabilidade alucinatória, que transforma prontamente qualquer representação de uma percepção sensorial numa percepção real, exige, como todas as alucinações, um grau anormal de excitabilidade do órgão perceptivo e não pode ser atribuída apenas a uma divisão da mente.
(6) PREDISPOSIÇÃO INATA – DESENVOLVIMENTO DA HISTERIA
Em quase todas as etapas destas considerações fui obrigado a reconhecer que a maioria dos fenômenos que nos vimos esforçando por compreender pode basear-se, entre outras coisas, numa idiossincrasia inata. Isso desafia qualquer explicação que procure ir além de uma simples enunciação dos fatos. Mas a capacidade de adquirir a histeria também se acha indubitavelmente ligada a uma idiossincrasia da pessoa em questão, e a tentativa de defini-la com maior exatidão talvez não seja inteiramente infrutífera.
Expliquei acima por que não posso aceitar a opinião de Janet de que a predisposição para a histeria se baseia numa fraqueza psíquica inata. O clínico que, na qualidade de médico da família, observa os membros de famílias histéricas em todas as idades, por certo ficará inclinado a achar que essa predisposição reside antes num excesso do que numa falta. Os adolescentes que depois se tornarão histéricos são, em sua maioria, bem vivazes, dotados e repletos de interesses intelectuais antes de adoecerem. Muitas vezes, sua força de vontade é notável. Incluem-se entre eles moças que levantam da cama à noite, em segredo, para fazer algum estudo que seus pais lhes proíbem temendo que se esforcem demais. A capacidade de formar opiniões sólidas por certo não é maior neles do que nas outras pessoas; mas é raro encontrar neles simples inércia intelectual e estupidez. A produtividade exuberante de suas mentes levou um de meus amigos a afirmar que os histéricos são a flor da humanidade – tão estéreis, sem dúvida, mas tão belos quanto as flores.
Sua vivacidade e inquietude, sua ânsia de sensações e atividade mental, sua intolerância à monotonia e ao tédio podem ser assim formuladas: eles se situam entre aquelas pessoas cujo sistema nervoso, enquanto em repouso, libera um excesso de excitação que exige ser utilizado (ver em [1]). Durante o desenvolvimento na puberdade e em conseqüência dele, esse excesso original é complementado pelo poderoso aumento da excitação que decorre do despertar da sexualidade, das glândulas sexuais. A partir daí há uma quantidade excedente de energia nervosa livre disponível para a produção de fenômenos patológicos.
Mas, para que esses fenômenos surjam sob a forma de sintomas histéricos, evidentemente precisa haver também uma outra idiossincrasia específica no indivíduo em questão, pois, afinal, a grande maioria das pessoas ativas e excitáveis não se torna histérica. Um pouco mais atrás | ver em [1]|, só pude definir essa idiossincrasia com uma expressão vaga e não esclarecedora: “excitabilidade anormal do sistema nervoso”. Mas talvez seja possível ir mais além e dizer que essa anormalidade reside no fato de que em tais pessoas a excitação do órgão central pode fluir para os aparelhos nervosos sensoriais que normalmente só são acessíveis aos estímulos periféricos, bem como para os aparelhos nervosos dos órgãos vegetativos, que são isolados do sistema nervoso central por poderosas resistências. É possível que essa idéia de haver um excedente de excitação constantemente presente, com acesso aos aparelhos sensorial, vasomotor e visceral, já explique certos fenômenos patológicos.
Nas pessoas desse tipo, tão logo sua atenção se concentra forçosamente em alguma parte do corpo, aquilo a que Exner |1894, 165 e segs.| chama de “facilitação pela atenção” na via sensorial de condução em questão excede a quantidade normal. A excitação livre e flutuante é, por assim dizer, desviada para essa via, produzindo-se uma hiperalgesia local. Como resultado, qualquer dor, como quer que seja causada, alcança intensidade máxima, e qualquer mal-estar é “horrível” e “insuportável”. Além disso, enquanto nas pessoas normais uma quantidade de excitação, depois de catexizar uma via sensitiva, sempre a abandona, isto não ocorre nestes casos. Aquela quantidade, ademais, não só permanece ali como é constantemente aumentada pelo influxo de novas excitações. Um leve dano a uma articulação leva assim à artralgia, e as sensações dolorosas devidas ao intumescimento ovariano conduzem à nevralgia ovariana crônica; e visto que os aparelhos nervosos da circulação são mais acessíveis à influência cerebral do que nas pessoas normais, deparamos com palpitações nervosas do coração, tendência a desmaios, propensão ao enrubescimento e empalidecimento excessivos, e assim por diante.
Todavia, não é apenas quando às influências centrais que os aparelhos nervosos periféricos são mais facilmente excitáveis. Eles também reagem de maneira excessiva e imprópria a estímulos funcionais adequados. Surgem palpitações tanto a partir de esforços moderados quanto da excitação emocional, e os nervos vasomotores fazem com que as artérias se contraiam (“dedos mortos”) independentemente de qualquer influência psíquica. E, da mesma forma que um ligeiro dano deixa uma artralgia atrás de si, um curto acesso de bronquite é seguido de asma nervosa, e a indigestão, de freqüentes dores cardíacas. Por conseguinte, devemos admitir que a acessibilidade a somas de excitação de origem central nada mais é do que um caso especial de uma excitabilidade anormal genérica, muito embora ela seja a mais importante do ponto de vista de nosso tópico atual.
Parece-me, portanto, que a antiga “teoria reflexa” desses sintomas, que talvez fossem mais bem definidos simplesmente como “nervosos”, mas que fazem parte do quadro clínico empírico da histeria, não deve ser inteiramente rejeitada. Os vômitos, que naturalmente acompanham a dilatação do útero na gravidez, podem muito bem, quando existe uma excitabilidade anormal, ser desencadeados de maneira reflexa por estímulos uterinos banais, ou talvez até mesmo pelas alterações periódicas do tamanho dos ovários. Estamos familiarizados com tantos efeitos remotos decorrentes de alterações orgânicas, tantos casos estranhos de “dor transferida”, que não podemos rejeitar a possibilidade de que um imenso grupo de sintomas nervosos por vezes determinados psiquicamente possam, em outros casos, ser efeitos distantes da ação reflexa. De fato, arrisco-me a formular a heresia bastante conservadora de que até mesmo a debilidade motora numa perna pode, algumas vezes, ser determinada por uma afecção genital, não psiquicamente, mas por ação reflexa direta. Penso que faremos bem em não insistir demais na exclusividade de nossas novas descobertas ou procurar aplicá-las a todos os casos.
Outras formas de excitabilidade sensorial anormal ainda escapam inteiramente à nossa compreensão: a analgesia geral, por exemplo, as áreas anestésicas, a restrição real do campo da visão, e assim por diante. É possível, e talvez provável, que outras observações venham comprovar a origem psíquica de um ou outro desses estigmas e assim expliquem o sintoma; só que isso ainda não aconteceu (pois não me arrisco a generalizar os resultados apresentados por nosso primeiro relato de caso), e não acho justificável presumir que essa seja a origem deles enquanto ela não tiver sido satisfatoriamente investigada.
Por outro lado, a idiossincrasia do sistema nervoso e da mente que vimos examinando parece explicar uma ou duas propriedades muito familiares de diversos pacientes histéricos. O excedente de excitação liberado pelo sistema nervoso dessas pessoas quando em estado de repouso determina sua incapacidade de tolerarem uma vida monótona e o tédio – a ânsia de sensações que os impele, após início de sua doença, a interromper a monotonia de sua vida sem validade por toda sorte de “incidentes”, dos quais os mais destacados são, a julgar pela natureza das coisas, fenômenos patológicos. Muitas vezes, essas pessoas são ajudadas nisso pela auto-sugestão. São impelidas a cada vez mais penetrar nesse caminho por sua necessidade de ficarem doentes – um traço notável que é tão patognomônico para a histeria quanto é o medo de adoecer para a hipocondria. Conheço uma mulher histérica que infligia a si mesma danos freqüentemente muito graves, apenas para seu próprio consumo e sem que aqueles que a cercavam, ou seu médico, tomassem conhecimento disso. Que mais não fosse, ela costumava fazer toda sorte de brincadeiras enquanto estava sozinha em seu quarto, simplesmente para provar a si mesma que não era normal. E o fazia, por ter, de fato, uma nítida sensação de não estar bem e de não poder desempenhar seus deveres de maneira satisfatória, tentando justificar-se a seus próprios olhos através de ações como essas. Outra paciente, uma mulher muito doente que sofria de uma conscienciosidade patológica e era cheia de dúvidas a respeito de si mesma, vivenciava todos os fenômenos histéricos como algo culposo, pois, segundo dizia, não precisava tê-los se realmente não os quisesse ter. Quando uma paresia em suas pernas foi erroneamente diagnosticada como uma doença da espinha, ela vivenciou isso como um imenso alívio e, quando lhe disseram que era “apenas nervosa” e que passaria, isso foi o bastante para acarretar graves dores de consciência. A necessidade de adoecer decorre do desejo da paciente de convencer a si mesma e às outras pessoas da realidade de sua doença. Quando essa necessidade se associa ainda à aflição causada pela monotonia de um quarto de enfermo, a inclinação a produzir cada vez mais sintomas novos desenvolve-se ao máximo.
Quando, no entanto, isso se transforma em fingimento e verdadeira simulação (e penso que agora pecamos tanto por excesso ao negar a simulação quanto pecávamos ao aceitá-la), isso se baseia, não na predisposição histérica, mas, como disse Moebius tão apropriadamente, em ser ela complicada por outras formas de degenerescência – por uma inferioridade moral inata. Da mesma forma, o “histérico rancoroso” surge quando alguém que é inatamente excitável, mas deficiente de emoção, cai também vítima do embrutecimento egoísta do caráter que é tão facilmente produzido pela má saúde crônica. Aliás, o “histérico rancoroso” mal chega a ser mais comum do que o paciente rancoroso nos estágios mais avançados da tabes.
O excedente da excitação também dá margem a fenômenos patológicos na esfera motora. As crianças com essa característica desenvolvem com muita facilidade movimentos semelhantes a tiques. Estes podem começar, num primeiro caso, por alguma sensação nos olhos ou no rosto, ou por alguma peça desconfortável do vestuário, mas se tornam permanentes a menos que sejam prontamente contidos. As vias reflexas são muito fáceis e rapidamente marcadas a fundo.
Também não se pode afastar a possibilidade de haver ataques convulsivos puramente motores, independentes de qualquer fator psíquico, e nos quais tudo o que acontece é que a massa de excitação acumulada por soma é descarregada, do mesmo modo que a massa de estímulos causada por modificações anatômicas é descarregada num ataque epiléptico. Nesse caso, teríamos a convulsão histérica não-ideogênica.
É tão freqüente vermos adolescentes anteriormente sadios, embora excitáveis, adoecerem de histeria durante a puberdade, que devemos perguntar a nós mesmos se esse processo não poderia criar uma predisposição para a histeria quando ela não está inatamente presente. E de qualquer modo, devemos atribuir a ela mais do que uma simples elevação da quantidade de excitação. O amadurecimento sexual incide sobre todo o sistema nervoso, aumentando a excitabilidade e reduzindo as resistências por toda parte. Isso nos é ensinado pela observação de adolescentes que não são histéricos, e temos assim justificativas para crer que o amadurecimento sexual também estabelece a predisposição histérica, na medida em que consiste precisamente nessa característica do sistema nervoso. Ao afirmarmos isso, já estamos reconhecendo a sexualidade como um dos principais componentes da histeria. Veremos que o papel que desempenha nela é ainda muito maior e que contribui das mais diversas maneiras para a constituição da doença.
Se os estigmas brotam diretamente desse campo de cultura inato da histeria e não são de origem ideogênica, é também impossível dar à ideogênese uma posição tão central na histeria quanto às vezes se dá hoje em dia. O que poderia ser mais autenticamente histérico do que os estigmas? Eles são os achados patognomônicos que estabelecem o diagnóstico, e no entanto, precisamente, eles não parecem ser ideogênicos. Mas se a base da histeria é uma idiossincrasia de todo o sistema nervoso, o complexo de sintomas ideogênicos psiquicamente determinados ergue-se sobre ela tal como um prédio sobre seus alicerces. E é um prédio de vários andares. Do mesmo modo que só é possível compreender a estrutura de tal prédio se distinguirmos os planos dos diferentes pisos, é necessário, penso eu, para entendermos a histeria, prestar atenção às várias espécies de complicação na causação dos sintomas. Se as desprezarmos e tentarmos levar adiante uma explicação da histeria empregando um nexo causal único, sempre encontraremos um resíduo muito grande de fenômenos que permanecem inexplicados. É como se tentássemos inserir os diferentes cômodos de uma casa de muitos pavimentos na planta de um único andar.
Tal como os estigmas, diversos outros sintomas nervosos – certas dores e fenômenos vasomotores, e talvez os ataques convulsivos puramente motores – são, como vimos, não causados por idéias, mas resultados diretos da anormalidade fundamental do sistema nervoso.
Os mais próximos deles são os fenômenos ideogênicos que consistem simplesmente em conversões da excitação afetiva (ver em [1]). Surgem como conseqüências de afetos em pessoas com uma predisposição histérica e, a princípio, são apenas uma “expressão anormal das emoções” (Oppenheim |1890|). Esta se transforma, pela repetição, num sintoma histérico autêntico e, na aparência, puramente somático, enquanto a idéia que deu lugar a ele se torna imperceptível (ver em [1]) ou é rechaçada e, portanto, repelida da consciência. As mais numerosas e importantes das representações que são rechaçadas e convertidas possuem um contexto sexual. Elas se acham na base de grande parte dos casos de histeria da puberdade. As moças que se aproximam da maturidade – e é principalmente delas que se trata – comportam-se de maneiras muito diferentes em relação às representações e sentimentos sexuais que se avolumam nelas. Certas moças defrontam-se com eles com total desembaraço, havendo entre elas algumas que ignoram e fecham os olhos a todo o assunto. Outras aceitam-nos como os meninos, sendo esta sem dúvida a norma entre as moças das classes camponesa e trabalhadora. Outras ainda, com uma curiosidade mais ou menos obstinada, correm atrás de qualquer coisa sexual que possam encontrar em conversas ou livros. E, finalmente, há naturezas de organização requintada que, embora seja grande sua excitabilidade sexual, possuem uma pureza moral igualmente grande e sentem que qualquer coisa sexual é algo incompatível com seus padrões éticos, algo de conspurcante e degradante. Elas recalcam a sexualidade afastando-a da consciência, e as representações afetivas de conteúdo sexual que provocaram os fenômenos somáticos são rechaçadas e assim se tornam inconscientes.
A tendência a rechaçar o que é sexual é ainda mais intensificada pelo fato de que, nas moças solteiras, a excitação sensual tem uma mescla de angústia, de medo do que está por vir, do que é desconhecido e apenas suspeitado, ao passo que, nos rapazes normais e saudáveis, ela é uma pulsão agressiva sem mesclas. A moça sente em Eros o terrível poder que rege e decide seu destino, e se assusta com isso. Tanto maior, portanto, é sua inclinação para desviar os olhos e recalcar para fora da consciência a coisa que a assusta.
O casamento acarreta novos traumas sexuais. É surpreendente que a noite de núpcias não tenha efeitos patogênicos com maior freqüência, visto que, infelizmente, o que ela implica é, muitas vezes, não uma sedução erótica, mas uma violação. A rigor, porém, não é raro encontrar em jovens casadas histerias que podem ser relacionadas a isso e que desaparecem quando, no correr do tempo, o prazer sexual emerge e apaga o trauma. Os traumas sexuais também ocorrem no curso ulterior de muitos casamentos. Os relatos de caso de cuja publicação fomos obrigados a nos abster incluem um grande número deles – exigências caprichosas feitas pelo marido, práticas antinaturais, etc. Não penso estar exagerando ao afirmar que a grande maioria das neuroses graves nas mulheres tem sua origem no leito conjugal.
Certos fatores sexuais nocivos, que consistem essencialmente em satisfação insuficiente (coitus interruptus, ejaculatio praecox, etc.) resultam, de acordo com a descoberta de Freud (1895b), não na histeria, mas numa neurose de angústia. Sou da opinião, entretanto, de que mesmo nesses casos a excitação do afeto sexual muitas vezes se converte em fenômenos histéricos somáticos.
É evidente por si só, e suficientemente comprovado por nossas observações, que os afetos não sexuais do susto, da angústia e da raiva levam ao desenvolvimento de fenômenos histéricos. Mas talvez valha a pena insistir repetidamente em que o fator sexual é de longe o mais importante e o que mais produz resultados patológicos. As observações pouco sofisticadas de nossos antecessores, cujo resíduo é preservado no termo “histeria” |originado da palavra grega designativa de “útero”|, aproximaram-se mais da verdade do que a concepção mais recente, que situa a sexualidade quase em último lugar, a fim de poupar os pacientes de recriminações morais. As necessidades sexuais dos pacientes histéricos são, sem dúvida, tão variáveis em grau de indivíduo para indivíduo quanto nas pessoas sadias, e não são mais fortes do que nelas; mas os primeiros adoecem por causa delas e, na maioria das vezes, precisamente pela luta que travam contra elas, em virtude de sua defesa contra a sexualidade.
Juntamente com a histeria sexual, devemos recordar nesta altura a histeria devida ao susto – a histeria traumática propriamente dita -, que constitui uma das formas de histeria mais conhecidas e reconhecidas.
No que se pode denominar de camada idêntica à dos fenômenos que resultam da conversão da excitação afetiva, encontram-se aqueles que devem sua origem à sugestão (na maioria das vezes, à auto-sugestão) em indivíduos inatamente sugestionáveis. O grau elevado de sugestionabilidade – isto é, a preponderância irrestrita das representações que foram despertadas recentemente – não se encontra entre os traços essenciais da histeria. Contudo, pode estar presente como uma complicação em pessoas com predisposição histérica, nas quais essa mesma idiossincrasia do sistema nervoso possibilita a realização somática de representações supervalentes. Além disso, na maioria dos casos, são apenas representações afetivas que se realizam em fenômenos somáticos por sugestão e, conseqüentemente, o processo pode muitas vezes ser considerado uma conversão do afeto concomitante de medo ou de angústia.
Esses processos – a conversão do afeto e a sugestão – permanecem idênticos mesmo nas formas complicadas de histeria que devemos agora considerar. Eles simplesmente encontram condições mais favoráveis em tais casos: é sempre através de um desses dois processos que surgem os fenômenos histéricos psiquicamente determinados.
O terceiro componente da predisposição histérica, que aparece em alguns casos além dos que já foram analisados, é o estado hipnóide, a tendência à auto-hipnose (ver em [1]). Esse estado favorece e facilita em grau máximo tanto a conversão como a sugestão, e dessa forma erige, por assim dizer, no topo das pequenas histerias, o pavimento mais alto da grande histeria. A tendência à auto-hipnose é um estado que, no começo, é apenas temporário e se alterna com o estado normal. Podemos atribuir-lhe o mesmo aumento de influência mental sobre o corpo que observamos na hipnose artificial. Essa influência é muito mais intensa e profunda aqui, na medida em que atua sobre um sistema nervoso que mesmo fora da hipnose é anormalmente excitável. Não sabemos dizer até que ponto e em que casos a tendência à auto-hipnose constitui uma propriedade inata do organismo.Externei antes (ver em [1]-[2]) a opinião de que ela se desenvolve a partir de devaneios carregados de afeto. Mas não há nenhuma dúvida de que a predisposição inata também desempenha um papel nisso. Se esse ponto de vista for correto, mais uma vez ficará claro aqui o quanto é enorme a influência atribuível à sexualidade no desenvolvimento da histeria, pois, salvo pelo cuidar de doentes, nenhum fator psíquico é tão bem destinado a produzir devaneios carregados de afeto quanto os anseios de uma pessoa apaixonada. E acima de tudo isso, o próprio orgasmo sexual, com sua riqueza de afeto e sua restrição da consciência, é intimamente afim dos estados hipnóides.
O elemento hipnóide manifesta-se mais claramente nos ataques histéricos e nos estados que podem ser classificados de histeria aguda e que, segundo parece, desempenham um papel tão relevante no desenvolvimento da histeria (ver em [1]). Estes são, obviamente, estados psicóticos que persis-tem por muito tempo, muitas vezes durante vários meses, e que com freqüência é necessário classificar de confusão alucinatória. Mesmo quando a perturbação não vai tão longe assim, surge nela uma grande variedade de fenômenos histéricos, alguns dos quais, na realidade, persistem depois de ela terminar. O conteúdo psíquico desses estados consiste, em parte, precisamente nas representações que foram rechaçadas na vida de vigília e recalcadas, sendo eliminadas da consciência. (Cf. os “delírios histéricos dos santos e das freiras, das mulheres que guardam a castidade e das crianças bem-educadas” | ver em [1]|.)
Visto que esses estados são, com muita freqüência, nada menos do que psicoses, apesar de derivados imediata e exclusivamente da histeria, não posso concordar com a opinião de Moebius de que, “com exceção dos delírios ligados aos ataques, é impossível falar numa insanidade histérica real” (1895, 18). Em muitos casos, esses estados constituem uma insanidade dessa natureza; e psicoses como estas também se repetem no curso ulterior de uma histeria. É verdade que, em essência, elas nada mais são do que a fase psicótica de um ataque, mas, considerando-se que duram meses, seria difícil denominá-las de ataques.
Como surge uma dessas histerias agudas? No caso mais conhecido (Caso 1), surgiu de uma acumulação de ataques hipnóides; em outro caso (quando já estava presente uma histeria complicada), surgiu associada a uma suspensão da morfina. O processo, em sua maior parte, é inteiramente obscuro e aguarda elucidação a partir de observações adicionais.
Assim sendo, podemos aplicar às histerias aqui analisadas o pronunciamento de Moebius (ibid., 16): “A modificação essencial que ocorre na histeria é que o estado mental do paciente histérico torna-se temporária ou permanentemente semelhante ao de um indivíduo hipnotizado.”
No estado normal, a persistência dos sintomas que surgem durante o estado hipnóide corresponde inteiramente a nossas experiências com a sugestão pós-hipnótica. Mas isso já implica que complexos de representações inadmissíveis à consciência coexistem com as seqüências de representações que seguem um curso consciente, que ocorreu uma divisão da mente (ver em [1]). Parece certo que isso pode acontecer até mesmo sem um estado hipnóide, a partir da profusão de pensamentos que foram rechaçados e recalcados da consciência, mas não suprimidos. De um modo ou de outro, passa a existir uma região da vida mental – ora precária de representações e rudimentar, ora mais ou menos em igualdade de condições com o pensamento de vigília – cujo conhecimento devemos, acima de tudo, a Binet e Janet. A divisão da mente é a consumação da histeria. Mostrei anteriormente (na Seção 5) de que modo ele explica as principais características desse distúrbio. Uma parte da mente do paciente fica em estado hipnóide permanentemente, mas com um grau variável de nitidez em suas representações, estando sempre preparada, todas as vezes que há um lapso no pensamento de vigília, para assumir o controle da pessoa inteira (por exemplo, num ataque ou num delírio). Isso ocorre tão logo um afeto poderoso interrompe o curso normal das representações, nos estados crepusculares e nos estados de exaustão. A partir desse estado hipnóide persistente, representações não motivadas e estranhas à associação normal forçam sua entrada na consciência, introduzem-se alucinações no sistema perceptivo e inervam-se atos motores independentemente da vontade consciente. Essa mente hipnóide é suscetível, no mais alto grau, à conversão de afetos e à sugestão, e assim aparecem com facilidade novos fenômenos histéricos, que, sem a divisão da mente, só surgiriam com grande dificuldade e sob a pressão de afetos repetidos. A parte expelida da mente é o demônio pelo qual a observação ingênua dos supersticiosos dos tempos primitivos acreditava que esses pacientes se achavam possuídos. É verdade que um espírito estranho à consciência de vigília do paciente exerce domínio sobre ele, porém o espírito não é de fato um estranho, mas parte dele mesmo.
A tentativa aqui empreendida de fazer uma interpretação sintética da histeria partindo do que dela sabemos hoje está sujeita à recriminação de ecletismo, se é que tal recriminação é justificável. Houve inúmeras formulações da histeria, desde a antiga “teoria reflexa” até a “dissociação da personalidade”, que tiveram de encontrar um lugar nela. Mas dificilmente poderia ser de outra forma, já que numerosos observadores excelentes e espíritos agudos se interessaram pela histeria. É improvável que qualquer de suas formulações estivesse destituída de uma parcela de verdade. Uma futura exposição do verdadeiro estado de coisas por certo as abrangerá a todas e simplesmente combinará todas as visões unilaterais do assunto numa realidade coletiva. O ecletismo, portanto, não me parece nada de que se deva envergonhar.
Mas quão longe ainda estamos hoje da possibilidade de qualquer compreensão completa da histeria! Com que traços incertos seus contornos foram esboçados nestas páginas, com que hipóteses toscas as imensas lacunas foram escondidas, e não preenchidas! Apenas uma consideração é até certo ponto consoladora: a de que essa falha se prende, e deve prender-se, a todas as exposições fisiológicas de processos psíquicos complexos. Devemos sempre dizer delas o que Teseu, no Sonho de uma Noite de Verão, diz da tragédia: “As melhores dentre estas não passam de sombras.” E mesmo a mais fraca não será destituída de valor se, honesta e modestamente, tentar apegar-se aos contornos das sombras que os objetos reais desconhecidos lançam sobre a parede, pois assim, apesar de tudo, sempre se justificará a esperança de que possa haver algum grau de correspondência e semelhança entre os processos reais e a idéia que fazemos deles.
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