Vol. I – (17) APÊNDICE B: TRECHO DA CARTA 39, ESCRITA POR FREUD A FLIESS EM 1º DE JANEIRO DE 1896


…Seus comentários sobre a enxaqueca me deram uma idéia cuja conseqüência seria a revisão completa de todas as minhas teorias sobre fyw, o que de momento não posso arriscar-me a fazer. Mas vou ver se consigo esboçá-la.
Meu ponto de partida são os dois tipos de terminações nervosas. As livres [em [1]] só recebem quantidade, que conduzem por soma [em [1]] até y; mas não têm poder de evocar sensações – isto é, de afetar w. Nesse sentido, o movimento neuronal conserva suas características qualitativas [em [1]] genuínas e monótonas. Essas são as vias de toda a quantidade que preenche y, e também, é claro, as vias da energia sexual. As vias de condução nervosa que começam nos órgãos terminais não conduzem quantidade, mas sim a característica qualitativa que lhes é peculiar; nada acrescentam à soma [de quantidade] nos neurônios y, colocando-os apenas em estado e de excitação. Os neurônios w são os neurônios y que só têm capacidade muito reduzida de catexia quantitativa. A condição necessária para que se produza a consciência é a coincidência dessas quantidades mínimas com a qualidade que lhes é fielmente transferida do órgão terminal. Agora [em meu novo esquema], intercalo esses neurônios w entre os neurônios f e os neurônios y, de modo que f transfira sua qualidade para w, e então w não transfere qualidade nem quantidade a y, mas meramente o excita – isto é, indica as vias a serem tomadas pela energia  livre. (Não sei se você vai poder entender essa confusão. Existem, por assim dizer, três formas pelas quais os neurônios se afetam mutuamente: (1) transferindo quantidade entre si, (2) transferindo qualidade entre si e (3) exercendo, segundo determinadas regras, um efeito excitante recíproco.)
Segundo essa visão, os processos perceptuais abrangeriam eo ipso [por sua própria natureza] a consciência e só produziriam seus efeitos psíquicos depois de se tornarem conscientes. Os processos y, em compensação, seriam inconscientes em si e só subseqüentemente adquiririam uma consciência secundária, artificial, ao se vincularem aos processos de descarga e de percepção (associação da fala) [em [1]]. Uma descarga de w, que tive de postular na exposição anterior desse tema [em [1]] já não é mais necessária; a alucinação, cuja explicação sempre criou dificuldades, já não é mais um movimento retroativo da excitação até  [em [1]], mas só até w. Agora fica muito mais fácil compreender a regra da defesa, que não se aplica às percepções, mas apenas aos processos y. O fato de a consciência secundária ficar para trás [ver atrás] possibilita uma descrição simples dos processos neuróticos. Também me livrei do incômodo problema de determinar quanto da intensidade f (dos estímulos sensoriais) é transferida para os neurônios y. A resposta é: em forma direta, absolutamente nada. A Q em y depende exclusivamente da medida em que a atenção livre de y é dirigida pelos neurônios w.
Essa nova hipótese também se ajusta melhor ao fato de que os estímulos sensoriais objetivos são tão ínfimos que, de acordo com o princípio da constância, é difícil derivar dessa fonte a força de vontade. Em compensação, [na nova teoria] a sensação não traz nenhum Q para y; a fonte da energia de y são as vias de condução orgânicas [endógenas].
O conflito entre a condução orgânica puramente quantitativa e os processos excitados em y pela sensação consciente me permite explicar também a liberação de desprazer, da qual necessito para o recalcamento nas neuroses sexuais.
No que se refere ao seu lado da questão, essa nova colocação abre a possibilidade de que ocorram estados de estimulação em órgãos que não produzem sensações espontâneas (embora devam ser, indubitavelmente, sensíveis à pressão), mas que por ação reflexa (isto é, pela influência do equilíbrio) podem instigar distúrbios a partir de outros centros nervosos. Com efeito, a idéia de que existe uma ligação mútua entre os neurônios ou entre os centros nervosos sugere também que os sintomas motores da descarga são de vários tipos. É provável, também, que os atos voluntários sejam determinados por uma transferência de Q, uma vez que descarregam a tensão psíquica. Além disso, existem descargas de prazer, espasmos etc. que não explico pela transferência de Q para o centro motor, mais sim pela liberação dela nesse centro, em decorrência de uma possível diminuição da Q de ligação no centro sensorial pareado com ele. Isso nos ofereceria a tão almejada distinção entre os movimentos “voluntários e espásticos”, e ao mesmo tempo permitiria explicar todo um grupo de efeitos somáticos secundários – na histeria, por exemplo.
Quanto aos processos puramente quantitativos de transferência para y, existe uma possibilidade de eles atraírem a consciência para si mesmos – mas só se essas conduções de Q atenderem às condições necessárias para produzir dor. Dessas condições, a essencial talvez seja a suspensão da soma e um afluxo contínuo [de Q] até y durante algum tempo. Certos neurônios w tornam-se hipercatexizados, produzem um sentimento de desprazer e levam também a atenção a se fixar nesse ponto particular. Assim se teria de conceber a “modificação nevrálgica” como um afluxo de Q emanada de determinado órgão e aumentada acima de certo limite, até deixar anulada a soma, levando à hipercatexização dos neurônios w e à fixação da energia y livre. Como vê, chegamos à enxaqueca; a precondição necessária seria a existência de regiões nasais no estado de estimulação que você comprovou a olho nu. O excesso de Q se distribuiria por diversas vias subcorticais antes de chegar a y. Uma vez feito isso, o fluxo de Q, agora contínuo, força seu acesso a y e, de acordo com a regra da atenção [em [1]], a energia y livre aflui para a sede da erupção.
Agora cabe perguntar qual é a fonte dos estados de estimulação nos órgãos nasais. A idéia que logo se oferece é a de que o órgão qualitativo dos estímulos olfativos seria a membrana de Schneider, enquanto o órgão quantitativo (diferente daquele) seriam os corpora cavernosa. As substâncias olfativas, como você mesmo crê e as flores nos ensinam, são produtos de degradação do metabolismo sexual; funcionariam como estímulos sobre os dois órgãos citados. Durante a menstuação e em outros processos sexuais, o organismo produz uma Q aumentada dessas substâncias – desses estímulos, portanto. Teríamos que estabelecer se elas atuam sobre os órgãos nasais através do ar expiratório ou por intermédio dos vasos sangüíneos; provavelmente por via sangüínea, já que antes dos ataques de enxaqueca não se tem nenhuma sensação olfativa subjetiva. Por conseguinte, o nariz receberia, por assim dizer, informações sobre os estímulos olfativos internos por intermédio dos corpora cavernosa, tal como recebe os estímulos externos através da membrana de Schneider: seríamos vítimas do próprio corpo. Essas duas formas de se produzir a enxaqueca – espontaneamente ou por odores e emanações tóxicas humanas [em [1]], seriam portanto equivalentes, e seus respectivos efeitos poderiam ser provocados a qualquer momento por soma.
Desse modo, a tumefação dos órgãos nasais de quantidade seria uma espécie de adaptação do órgão sensorial, resultante do incremento do estímulo interno, à semelhança do que ocorre, na adaptação dos órgãos sensoriais verdadeiros (qualitativos), no arregalar dos olhos e concentrá-los em algum foco de atenção, no aguçar dos ouvidos, e assim por diante.
Talvez não seja muito difícil transpor para essa concepção as outras fontes de enxaqueca e estados semelhantes, embora eu ainda não saiba como se poderia fazer isso. Em todo caso, é mais importante verificar a idéia em relação ao nosso tema principal.
Dessa maneira, numerosas idéias médicas antigas e obscuras adquirem vida e valor.
APÊNDICE C: A NATUREZA DA Q
Não há mistério em torno da primeira das duas “idéias principais” com que Freud inicia o Projeto (cf. em [1]) – o neurônio e a Q. A segunda, porém, exige certo exame, principalmente quando tudo leva a crer que foi a precursora de um conceito que iria desempenhar um papel fundamental na psicanálise. Aqui não nos interessa decifrar o enigma especial, mencionado atrás, na Introdução do Editor, da diferença entre Q e Q. Vamos nos ocupar agora é da Q (como o próprio Freud declara explicitamente no fim do primeiro parágrafo do Projeto) – uma Q que possui alguma conexão especial com o sistema nervoso.
Como foi, portanto, que Freud imaginou essa Q no outono de 1895?
À parte a circunstância óbvia de que ele tencionava apresentá-la como uma coisa concreta – “sujeita às leis gerais do movimento” (em [1]) -, logo se percebe que ela surge em duas formas distintas. A primeira consistiria na Q em fluxo, passando através de um neurônio ou indo de um neurônio a outro. Isso vem descrito de vários modos: por exemplo, “a excitação neuronal em estado fluente” (em [1]), “uma Q fluente” (em [1]), “corrente” (em [1]), ou “passagem de excitação” (em [1]). A segunda, que é mais estática, é demonstrada por “um neurônio catexizado, cheio de” Q (em [1]).
A importância dessa distinção entre os dois estados da Q só se faz sentir gradativamente no Projeto, ficando-se quase tentado a supor que o próprio Freud só se deu conta dela quando escrevia a obra. O primeiro indício dessa importância está relacionado com a análise do mecanismo para apontar a diferença entre alucinações e percepções, e o papel desempenhado nesse mecanismo pela ação inibidora procedente do ego (Seções 14 e 15 da Parte I). Os pormenores dessa ação inibidora (a interferência de uma “catexia colateral”, dirigida por uma catexia da atenção vinda do ego) são fornecidos em [1]-[2], e seu efeito consiste em modificar o estado da Q em fluxo para um estado de Q estática num neurônio. Essa distinção é depois (em [1]-[2]) relacionada com a distinção entre o processo primário (não-inibido) e o secundário (inibido). Outra forma ainda de descrevê-la surge pouco mais adiante (em [1]), com a noção de que a catexia colateral interveniente exerce um efeito “de ligação” sobre a Q. Mas é só na Parte III do Projeto(em [1]) que ficam expostas todas as implicações da diferença entre um estado ligado e um estado móvel da Q. A necessidade da hipótese de haver dois estados de Q aparece, àquela altura, relacionada à análise do mecanismo do pensamento de Freud, que requer um estado no neurônio “que, embora na presença de uma catexia elevada, permite apenas uma corrente pequena” (em [1]).
Assim, a Q pareceria mensurável de dois modos: pela altura do nível da catexia dentro de um neurônio e pelo índice de fluxo entre as catexias. Isso foi ocasionalmente interpretado como prova de que Freud realmente acreditava que a Q fosse simplesmente eletricidade e que as duas maneiras de medi-la corresponderiam à amperagem e à voltagem. É bem verdade que, cerca de um ano e meio antes da redação do Projeto, em seu primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1894a), ele já tinha feito uma vaga comparação entre algo que seria precursor da Q e “uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo” (ver em [1]). É também verdade que Breuer, em sua contribuição teórica para os Estudos sobre a Histeria (1895d) (publicados apenas alguns meses antes de ser escrito o Projeto), dedicou um pouco de espaço a uma analogia elétrica com as “excitações” nas “vias condutoras do cérebro” (ver em [1]-[2]). Apesar disso, não há nenhuma palavra no Projeto que sugira que houvesse qualquer idéia desse tipo na mente de Freud. Ao contrário, ele não cansa de salientar que desconhecemos a natureza do “movimento neuronal”. (Ver, por exemplo, em [1], [2] e [3].)
É forçoso reconhecer que existem certas partes obscuras na descrição fornecida no Projeto para a natureza do estado “ligado” e seu mecanismo. Uma das mais intrigantes diz respeito ao processo de “juízo” e ao papel nele desempenhado por uma catexia procedente do ego. Essa influência está descrita das maneiras mais variadas – como “catexia colateral”, ou “pré-catexia”, ou “hipercatexia” – e se encontra intrinsecamente implicada naidéia de uma catexia da atenção. A princípio (ver em [1], por exemplo), parece que a atenção é apenas um meio de dirigir as catexias colaterais para o lugar onde são necessárias. Mas em outros trechos (ver em [1], por exemplo), tem-se a impressão de que a hipercatexia da atenção constitui, em si mesma, a força que produz o estado “ligado”.
Efetivamente, todo o problema da relação da atenção com a Q requer um exame meticuloso. (A “energia livre de ”, como Freud parece denominá-la na carta enviada a Fliess em 1º de janeiro de 1896, Apêndice B) A atenção é mencionada discretamente na Seção 14 da Parte I (em [1]), mas logo começa a mostrar sua importância (na Seção 19 da Parte I e na Seção 6 da Parte II), até se tornar, na Parte III, um elemento quase predominante. Apesar disso, nos escritos posteriores de Freud, a “atenção”, depois de ser citada esporadicamente, é quase relegada ao esquecimento. Alguns vestígios anônimos, porém, persistem até o fim, em dois sentidos bastante diferentes que, em última análise, remontam ao Projeto. O primeiro e mais óbvio se relaciona com o “teste de realidade”, cuja história foi integralmente documentada na Nota do Editor Inglês à discussão metapsicológica dos sonhos (1917d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, em [1]-[2], IMAGO Editora, 1974. O outro, menos evidente, mas talvez mais importante, diz respeito justamente ao papel desempenhado pela atenção ou por alguma instância semelhante na determinação da diferença entre a Q em seu estado ligado e seu estado livre, e, além disso, entre os processos primário e secundário. Essa função da atenção é discutida numa nota de rodapé do Editor Inglês a “O Inconsciente” (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, em [1], IMAGO Editora, 1974. E há uma alusão indireta nas derradeiras obras de Freud, Moisés e o Monoteísmo (1939a), Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, em [1], IMAGO Editora, 1975, e o Esboço de Psicanálise (1940a) [1938], ibid., em [1].
Sejam quais forem os pormenores exatos do mecanismo responsável pela transformação da Q livre em Q ligada, é evidente que Freud atribuía a maior importância à distinção propriamente dita. “Em minha opinião”, escreveu ele em “O Inconsciente”, “essa distinção representa a compreensão mais profunda a que chegamos até agora quanto à natureza da energia nervosa” (ibid., Vol. XIV, em [1]).
Essa citação talvez também nos anime a esperar que os escritos posteriores de Freud esclareçam nosso problema imediato da natureza da Q. A Q propriamente dita, com esse nome, jamais reaparece, embora não haja dificuldade em reconhecê-la sob várias cognominações, a maioria das quais já usadas no Projeto. Uma delas, sobretudo, a “energia psíquica”, exige atenção, pois enfatiza o que parece constituir uma mudança vital sofrida pelo conceito. Q não é mais “uma coisa concreta”, tornou-se uma coisa psíquica. Não há nenhuma referência a “energia psíquica” no Projeto (“Energia y”, mencionada na Carta 39, cf. em [1] etc., significa apenas “energia procedente do sistema neuronal y”.) Mas já passa ao uso comum em A Interpretação dos Sonhos. Apesar disso, a mudança não implica um abandono completo de uma base física. Muito embora Freud declare (Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972), que “permanecerá no campo psicológico”, um exame minucioso revela traços da antiga formação neurológica. Mesmo no famoso trecho do livro sobre o chiste (1905c, Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, [1]), onde ele parece dar as costas aos neurônios e fibras nervosas, na realidade deixa a porta totalmente aberta para uma explicação fisiológica. Com efeito, na frase do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e) citada acima, Freud fala em “energia nervosa”, e não em “energia psíquica”. Por outro lado, na edição alemã de suas obras completas publicada em 1925, ele modificou duas palavras na última frase dos Estudos sobre a Histeria (1895d), de “sistema nervoso” para “vida mental” (Edição Standard Brasileira, Vol. II, [1], IMAGO Editora, 1974). Mas, por maior ou menor que tenha sido essa revolução, não resta dúvida de que muitas características fundamentais da Q sobreviveram em forma transfigurada, até o fim, nos escritos de Freud: prova disso são as inúmeras referências nas notas de rodapé destas páginas.
Um problema particularmente interessante surge na relação da Q com as pulsões. Estas quase nunca são citadas pelo nome no Projeto. É evidente, porém, que são as sucessoras da “Q endógena” ou das “excitações endógenas”. Um pouco da história da evolução dos pontos de vista de Freud em relação às pulsões é dado na Nota do Editor Inglês a “As Pulsões (“OsInstintos”) e Suas Vicissitudes”, Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1] e seguintes, IMAGO Editora, 1974, e, sobretudo, da história das várias classificações que fez delas, primeiro em pulsões libidinais e do ego e, depois, em pulsões libidinais e destrutivas. Um aspecto que não foi mencionado aqui e que apresenta um interesse todo especial no presente contexto é a sugestão, duas vezes lançada por Freud, da possibilidade de uma “energia psíquica indiferente”, que poderia assumir qualquer das duas formas de pulsão: cf. o artigo sobre o narcisismo (1914c), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, [1], IMAGO Editora, 1974, e Edição Standard Brasileira, Vol. XIX, [1]. Essa “energia psíquica indiferente” se parece muito com um retorno à Q.
Essas incertezas subseqüentes a respeito das pulsões (entidades que, tal como a Q, se encontram “na fronteira entre o mental e o físico”) e de sua classificação nos lembram que Freud sempre se mostrou muito coerente ao salientar nossa ignorância quanto à natureza básica da Q ou de seja lá qual for o nome que se lhe dê. Isso, como já vimos (em [1]) é repetido com insistência no próprio Projeto. Mas a questão volta uma infinidade de vezes nas obras posteriores: para citar apenas algumas, em A Interpretação dos Sonhos (1900a), Edição Standard Brasileira, Vol. V, [1], IMAGO Editora, 1972, no artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), ibid., Vol. XIV, [1], e em Moisés e o Monoteísmo (1939a), ibid., Vol. XXIII, [1]. Essa conclusão está expressa com a maior clareza possível em Além do Princípio do Prazer (1920g), Edição Standard Brasileira, Vol. XVIII, [1]: “A indefinição de todas as nossas discussões sobre o que descrevemos como metapsicologia se deve, naturalmente, ao fato de nada sabermos da natureza do processo excitatório que ocorre nos elementos dos sistemas psíquicos, e a não nos sentirmos autorizados a formular qualquer hipótese sobre o assunto. Estamos, conseqüentemente, trabalhando o tempo todo com um grande fator desconhecido, que somos obrigados a transportar para cada fórmula nova”. Tudo indica, portanto, que a nossa investigação tem que terminar aqui e que não há outro remédio senão seguir Freud, deixando insóluvel o problema da Q.
Mas, embora a natureza fundamental da Q fosse ignorada por Freud, alguns de seus traços essenciais sempre foram pressupostos e reiterados por ele até o fim de sua vida. Se nos voltarmos para uma das primeiras referências a ela, citada em [1], no primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1894a), Edição Standard Brasileira, Vol. III, [1], encontraremos essa entidade desconhecida descrita como algo “que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) capaz de aumento, diminuição, deslocamento e descarga”. Não resta a menor dúvida de que a misteriosa Q recebeu seu nome pela própria razão de possuir essas características.
Desde o início, as considerações quantitativas sempre tiveram que ser levadas em conta em vários pontos das teorias de Freud. Por exemplo, em “A Etiologia da Histeria” (1896c) lê-se que “na etiologia das neuroses, as precondições quantitativas são tão importantes quanto as qualitativas: há valores liminares que têm de ser transpostos antes que a enfermidade possa tornar-se manifesta” (Edição Standard Brasileira, Vol. III, [1]). Mais importante, porém, é o fato de que a quantidade está implícita em toda a teoria do conflito como causa não só das neuroses, mas também de toda uma série de estados mentais. Há uma porção de trechos em que esse fato se torna explícito: por exemplo, em “Tipos de Desencadeamento da Neurose” (1912c), Edição Standard Brasileira, Vol. XII, [1]; na Conferência XXIII das Conferências Introdutórias (1916-17), idem, Vol. XVI, [1]-[2]; em “Alguns Mecanismos Neuróticos” (1922b), idem, Vol. XVIII,  [1], e em “Análise Terminável e Interminável” (1937c), Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, [1], IMAGO Editora, 1975. Neste último caso, a importância dos fatores quantitativos está relacionada com a situação terapêutica; mas isso também já ocorrera quarenta anos antes, na contribuição de Freud aos Estudos sobre a Histeria (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, pág. [1], IMAGO Editora, 1974. Em seu grande artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), Freud usou o termo “econômico” como equivalente de “quantitativo”, ibid., Vol. XIV, pág. [1], IMAGO Editora, 1974, e a partir daí passou a usar as duas palavras como sinônimos. Estaremos certos, portanto, em considerar a nossa enigmática Q, seja qual for a sua natureza última, como a precursora de um dos três fatores fundamentais de metapsicologia.

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