CASO 2 – SRA EMMY VON N., IDADE 40 ANOS, DA LIVÔNIA (FREUD)



Em 1º de maio de 1889, comecei o tratamento de uma senhora de cerca de quarenta anos, cujos sintomas e personalidade me interessaram de tal forma que lhe dediquei grande parte de meu tempo e decidi fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para recuperá-la. Era histérica e podia ser posta com a maior facilidade num estado de sonambulismo; ao tomar ciência disso, resolvi fazer uso da técnica de investigação sob hipnose, de Breuer, que eu viera a conhecer pelo relato que ele me fizera do bem-sucedido tratamento de sua primeira paciente. Essa foi minha primeira tentativa de lidar com aquele método terapêutico | ver em [1] e [2]|. Estava ainda longe de tê-lo dominado; de fato, não fui bastante à frente na análise dos sintomas, nem o segui de maneira suficientemente sistemática. Talvez possa apresentar melhor um quadro da condição da paciente e de minha conduta clínica reproduzindo as anotações que fiz todas as noites durante as três primeiras semanas do tratamento. Onde quer que a experiência posterior me haja proporcionado melhor compreensão, eu a incorporarei em notas de rodapé e comentários intercalados.
1º de maio de 1889. – Essa senhora, quando a vi pela primeira vez, estava deitava num sofá com a cabeça repousando numa almofada de couro. Parecia ainda jovem e as feições eram delicadas e marcantes. O rosto tinha uma expressão tensa e penosa, as pálpebras estavam cerradas e os olhos, baixos; a testa apresentava profundas rugas e as dobras nasolabiais eram acentuadas. Falava em voz baixa, como se tivesse dificuldade, e a fala ficava de tempos em tempos sujeita a interrupções espásticas, a ponto de ela gaguejar. Conservava os dedos firmemente entrelaçados, e eles exibiam uma agitação incessante, parecida com a que ocorre na atetose. Havia freqüentes movimentos convulsivos semelhantes a tiques, no rosto e nos músculos do pescoço, durante os quais alguns destes, especialmente o esternoclidomastóideo direito, se tornavam muito salientes. Além disso, ela interrompia com freqüência suas observações emitindo um curioso “estalido” com a boca, um som impossível de imitar.
O que a paciente me dizia era perfeitamente coerente e revelava um grau inusitado de instrução e inteligência. Isso fazia com que parecesse ainda mais estranho que, a cada dois ou três minutos, ela de súbito se calasse, contorcesse o rosto numa expressão de horror e nojo, estendesse a mão em minha direção, abrindo e entortando os dedos, e exclamasse numa voz alterada, carregada de angústia: “Fique quieto! – Não diga nada! – Não me toque!” É provável que estivesse sob a influência de alguma alucinação recorrente de natureza apavorante e que, com essa fórmula, estivesse mantendo afastado o material intromissivo. Essas interpolações chegavam ao fim tão de súbito quanto começavam, e a paciente retomava seu relato anterior, sem dar continuidade a sua excitação momentânea e sem explicar ou pedir desculpas por seu comportamento – provavelmente, portanto, sem que ela própria notasse a interpolação.
Tomei conhecimento do seguinte sobre as circunstâncias de sua vida: Sua família era originária da Alemanha Central, mas duas de suas gerações haviam fixado residência nas províncias bálticas da Rússia, onde possuía grandes propriedades. Ela era a décima terceira de quatorze filhos. Apenas quatro dentre eles sobreviveram. A paciente recebeu uma educação cuidadosa, mas sob a disciplina rígida de uma mãe excessivamente enérgica e severa. Quando contava vinte e três anos, casou-se com um homem muito bem-dotado e capaz, que alcançara uma posição elevada como grande industrial, mas que era muito mais velho do que ela. Depois de um casamento de curta duração, ele morreu de derrame cerebral. A esse fato, bem como à tarefa de educar as duas filhas, então com dezesseis e quatorze anos, muitas vezes enfermas e que sofriam de distúrbios nervosos, ela atribuía sua própria doença. Desde a morte do marido, quatorze anos antes, vivera constantemente doente, com variados graus de gravidade. Há quatro anos, seu estado sofrera uma melhora temporária com uma série de massagens combinadas com banhos elétricos. Afora isso, todos os seus esforços para melhorar de saúde têm sido infrutíferos. Ela viajou muito e tem um vivo interesse por muitas coisas. Atualmente, mora numa casa de campo num ponto do Báltico, perto de uma grande cidade. Há vários meses tem estado outra vez muito doente, sofrendo de depressão e insônia e atormentada por dores; foi até Abbazia na vã esperança de obter melhoras, e nas últimas seis semanas está em Viena, até agora sob os cuidados de um médico de excelente reputação.
Sugeri que ela se separasse das duas filhas, que têm governanta, e se internasse numa casa de saúde, onde eu poderia vê-la todos os dias. Concordou com isso sem levantar a menor objeção.
Na noite de 2 de maio visitei-a na casa de saúde. Notei que se assustava muito sempre que a porta se abria de modo inesperado. Assim, providenciei para que, ao visitá-la, as enfermeiras e os médicos internos batessem com força na porta e só entrassem depois de ela dizer que podiam fazê-lo. Mesmo assim, ela ainda fazia trejeitos faciais e dava um pulo toda vez que alguém entrava.
Sua principal queixa hoje foi sobre sensações de frio e dor na perna esquerda, que se originavam nas costas, acima da crista do ilíaco. Ordenei que lhe dessem banhos quentes e lhe aplicarei massagens por todo o corpo duas vezes ao dia.
Ela é uma excelente paciente para o hipnotismo. Bastou eu levantar um dedo diante dela e ordenar-lhe que dormisse para que se reclinasse com uma expressão atordoada e confusa. Sugeri que ela dormiria bem, que todos os seus sintomas melhorariam, e assim por diante. Ela ouviu tudo isso com os olhos fechados, mas sem dúvida com uma atenção inconfundivelmente concentrada, e suas feições aos poucos se relaxaram e assumiram uma aparência pacífica. Depois dessa primeira hipnose, conservou uma tênue lembrança de minhas palavras, mas, já na segunda, houve completo sonambulismo (com amnésia). Tinha-a avisado de que pretendia hipnotizá-la, ao que ela não opusera nenhuma dificuldade. Ela nunca fora hipnotizada antes, mas pode-se supor que já leu sobre o hipnotismo, embora eu não saiba dizer quais são suas idéias sobre o estado hipnótico.
Esse tratamento à base de banhos quentes, massagens duas vezes ao dia e sugestão hipnótica prosseguiu por mais alguns dias. Ela dormia bem, melhorava a olhos vistos e passava a maior parte do dia tranqüilamente deitada. Não lhe foi proibido ver as filhas, ler, ou cuidar da correspondência.
8 de maio, manhã. – Ela me entreteve, num estado que parecia normal, com histórias aterradoras sobre animais. Lera no Frankfurter Zeitung, que estava na mesa em frente a ela, uma história de como um aprendiz amarrara um menino e lhe pusera na boca um rato branco. O menino morrera de susto. O Dr. K. lhe dissera ter mandado uma caixa cheia de ratos brancos para Tiflis. Ao narrar-me isso, ela demonstrava todos os sinais de horror. Torcia e retorcia as mãos várias vezes. “Fique quieto! – Não diga nada! – Não me toque! – Imagine só se houvesse uma criatura dessas na cama!” (Estremeceu.) “Pense só, quando for aberta! Há um rato morto entre eles – um que foi ro-o-í-do!”
Durante a hipnose tentei eliminar essas alucinações com animais. Enquanto ela dormia, apanhei o Frankfurter Zeitung. Achei a história do menino que fora maltratado, mas sem nenhuma referência a camundongos ou ratos. Logo, ela os havia introduzido a partir de seu delírio enquanto lia. (À noite, falei-lhe de nossa conversa sobre os ratos brancos. Ela não sabia de nada daquilo, ficou muito surpresa e deu boas risadas.)
À tarde teve o que chamou de uma “cãibra no pescoço”, que no entanto, como disse, “só durou pouco tempo – umas poucas horas”.
Noite. – Pedi-lhe que, sob hipnose, falasse, o que, depois de certo esforço, ela conseguiu fazer. Falava baixo e refletia por um momento, cada vez, antes de responder. Sua expressão se alterava de acordo com o tema de suas observações e se acalmava tão logo minha sugestão punha termo à impressão nela causada pelo que dizia. Perguntei-lhe por que se assustava com tanta facilidade e ela respondeu: “Está relacionado com as lembranças de minha meninice.” “Quando?” “Primeiro, quando eu tinha cinco anos e meus irmãos e irmãs costumavam atirar animais mortos em mim. Foi aí que tive meu primeiro desmaio e espasmos. Mas minha tia disse que aquilo era uma vergonha e que eu não devia ter daqueles ataques, de modo que eles pararam. Depois me assustei de novo quando tinha sete anos, e inesperadamente, vi minha irmã no caixão; e outra vez quando contava oito anos e meu irmão me aterrorizou uma porção de vezes, enrolando-se em lençóis como um fantasma; e também quando tinha nove anos e vi minha tia no caixão e de repente o queixo dela caiu.”
É claro que essa série de causas desencadeadoras traumáticas que ela citou em resposta a minha pergunta sobre a razão de ser tão propensa a se assustar já estava pronta em sua memória. Ela não poderia ter reunido tão depressa esses episódios de diferentes períodos de sua infância no curto intervalo transcorrido entre minha pergunta e sua resposta. No fim de cada uma das histórias ela se crispava toda e assumia uma expressão de medo e horror. Ao final da última, escancarou a boca e ficou ofegante. As palavras com que descreveu o tema pavoroso de sua experiência foram pronunciadas com dificuldade e entremeadas de estertores. Depois, suas feições se tranqüilizaram.
Em resposta a uma pergunta, disse-me que enquanto descrevia essas cenas via-as diante de si, numa forma plástica e em suas cores naturais. Contou que, em geral, pensava nessas experiências com muita freqüência e o fizera nos últimos dias. Sempre que isso acontecia, via essas cenas com toda a nitidez da realidade. Compreendo agora por que tantas vezes ela me entretém com cenas de animais e quadros de cadáveres. Minha terapia consiste em eliminar esses quadros, de modo que ela não possa mais vê-los diante de si. Para reforçar minha sugestão, passei suavemente a mão por seus olhos várias vezes.
9 de maio, |manhã.| – Sem que lhe tivesse dado nenhuma outra sugestão, ela dormiu bem. Mas sentiu dores gástricas pela manhã. Estas surgiram ontem, no jardim, onde ela permaneceu muito tempo com as filhas. Concordou em que eu limitasse as visitas das moças a duas horas e meia. Alguns dias atrás recriminara a si própria por deixar as filhas sozinhas. Encontrei-a um tanto agitada hoje; a testa estava enrugada, a fala era hesitante e ela produzia aqueles estalidos característicos. Enquanto era massageada, disse-me apenas que a governanta das filhas lhe levara um atlas etnológico e que algumas fotografias de índios norte-americanos vestidos como animais lhe produziram um grande choque. “Pense só se eles ganhassem vida!” (Estremeceu.)
Sob hipnose perguntei-lhe por que se assustara tanto com essas fotografias, visto já não ter mais medo de animais. Respondeu que a tinham feito recordar as visões que tivera (aos dezenove anos) na época da morte do irmão. (Deixarei para depois as indagações sobre essa lembrança.) A seguir, perguntei-lhe se sempre gaguejara e há quanto tempo tinha o tique (o estalido peculiar): A gagueira, disse, surgira quando estava doente; tinha o tique há cinco anos, desde o tempo em que estivera sentada à cabeceira da filha mais nova, quando esta esteve muito doente, e desejara ficar absolutamente quieta. Tentei reduzir a importância dessa lembrança, ressaltando que, afinal de contas, nada acontecera à filha, e assim por diante. A coisa surgia, disse-me ela, sempre que ficava apreensiva ou assustada. Dei-lhe instruções para que não se assustasse com os retratos dos peles-vermelhas, mas que risse à vontade deles e até chamasse para eles minha atenção. E isso de fato aconteceu depois de ela despertar: olhou para o livro, perguntou-me se o tinha visto, abriu-o na página e riu alto das figuras grotescas, sem o menor indício de medo e sem que suas feições denotassem a menor tensão. O Dr. Breuer entrou subitamente com o médico interno para visitá-la. Ela se assustou e começou a produzir o estalido característico, de modo que eles logo se retiraram. A paciente me explicou que ficara agitada daquela maneira por ser desagradavelmente afetada pelo fato de o médico interno também entrar a todo instante.
Eu também havia eliminado suas dores gástricas durante a hipnose, tocando-a levemente no abdome, e lhe disse que, embora ela esperasse pelo retorno da dor depois do almoço, isso não aconteceria.
Noite. – Pela primeira vez ela se mostrou alegre e falante e deu mostras de um senso de humor que eu não teria esperado numa mulher tão séria; e entre outras coisas, com a acentuada sensação de estar melhor, zombou do tratamento feito por meu antecessor. De há muito pretendia, segundo me disse, desistir daquele tratamento, mas não conseguia encontrar o método certo de fazê-lo, até que uma observação fortuita feita pelo Dr. Breuer, numa ocasião em que a visitou, indicou-lhe a solução. Quando pareci surpreso com isso, assustou-se e começou a recriminar-se asperamente por ter sido indiscreta. Ao que parece, porém, consegui reassegurá-la. – Ela não tinha sentido as dores gástricas, embora as houvesse esperado.
Sob hipnose pedi-lhe que me contasse outras experiências que tivessem dado margem a um medo duradouro. Ela forneceu uma segunda seqüência dessa espécie, que datava do final de sua juventude, com a mesma rapidez da primeira seqüência, e me assegurou mais uma vez que todas essas cenas surgiram diante dela muitas vezes, nitidamente e em cores. Uma delas era de como viu uma prima ser levada para um asilo de loucos (quando ela estava com quinze anos). Ela havia tentado pedir socorro, mas não conseguira e perdera a capacidade de falar até a noite do mesmo dia. Visto que ela falava em hospícios com muita freqüência em seu estado de vigília, interrompi-a e perguntei em que outras ocasiões ela se preocupara com a loucura. Ela me contou que sua própria mãe tinha passado algum tempo num hospício. Em certa época, tiveram uma empregada cuja antiga patroa estivera muito tempo internada numa dessas instituições e que costumava contar-lhes histórias aterradoras de como os pacientes eram amarrados a cadeiras, espancados, etc. Ao narrar-me isso, retorceu as mãos, horrorizada; estava vendo tudo diante dos olhos. Esforcei-me por corrigir-lhe as idéias sobre os manicômios e lhe assegurei que ela conseguiria ouvir falar de instituições dessa natureza sem referi-las a si mesma. Com isso, suas feições se relaxaram.
Prosseguiu com sua relação de lembranças aterradoras. Uma, aos quinze anos, de como encontrara a mãe, que tivera um derrame cerebral, estendida no chão (a mãe viveu mais quatro anos); de novo, aos dezenove, de como chegou a casa certo dia e encontrou a mãe morta, com o rosto contorcido. Naturalmente, tive uma dificuldade considerável em atenuar-lhe essas lembranças. Após uma explicação bastante longa, assegurei-lhe que também esse quadro só lhe surgiria outra vez de forma indistinta e sem intensidade. – Outra lembrança era a da maneira como, aos dezenove anos, ela levantou uma pedra e encontrou debaixo dela um sapo, o que a fez perder a fala durante horas.
Durante essa hipnose convenci-me de que ela sabia de tudo o que acontecera na última hipnose, enquanto na vida de vigília não tem nenhum conhecimento disso.
10 de maio, manhã. – Pela primeira vez, deram-lhe hoje um banho de farelo, em vez de seu habitual banho morno. Achei-a com uma expressão de aborrecimento e angústia, com as mãos envoltas num xale. Queixava-se de frio e dores. Quando lhe perguntei o que se passava, disse-me que o banho fora incomodamente curto e provocara dores. Durante a massagem, começou por dizer que ainda se sentia mal por ter atraiçoado o Dr. Breuer ontem. Acalmei-a com uma pequena mentira e disse que eu já sabia daquilo o tempo todo, ao que sua agitação (estalidos, trejeitos faciais) cessou. Todas as vezes, portanto, mesmo enquanto a massageio, minha influência já começa a afetá-la; a paciente fica mais tranqüila e mais lúcida, e mesmo sem que haja perguntas sob hipnose consegue descobrir a causa de seu mau humor daquele dia. Tampouco sua conversa durante a massagem é tão sem objetivo como poderia parecer. Pelo contrário, encerra uma reprodução razoavelmente completa das lembranças e das novas impressões que a afetaram desde nossa última conversa e, muitas vezes, de maneira bem inesperada, progride até as reminiscências patogênicas, que ela vai desabafando sem ser solicitada. É como se tivesse adotado meu método e se valesse de nossa conversa, aparentemente sem constrangimento e guiada pelo acaso, como um complemento de sua hipnose. Por exemplo, hoje começou a falar sobre sua família e, com muitos rodeios, passou ao assunto de um primo. Este não era muito bom da cabeça e os pais mandaram arrancar-lhe todos os dentes de uma só vez. Ela acompanhou a história com expressões de horror e ficou repetindo sua fórmula protetora (“Fique quieto! – Não diga nada! – Não me toque!”). Depois disso, seu rosto se descontraiu e ela ficou alegre. Assim, seu comportamento na vida de vigília é dirigido pelas experiências que teve durante o sonambulismo, embora acredite, enquanto está acordada, nada saber a respeito delas.
Sob hipnose repeti minha pergunta quanto àquilo que a perturbara e recebi as mesmas respostas, mas na ordem inversa: (1) sua conversa indiscreta de ontem, e (2) suas dores provocadas por ter sentido muito desconforto no banho. – Perguntei-lhe hoje o significado de sua frase “Fique quieto!”, etc. Explicou que, quando tinha pensamentos assustadores, temia que eles fossem interrompidos em seu curso, porque então tudo ficaria confuso e as coisas ficariam ainda piores. O “Fique quieto!” relacionava-se com o fato de que as formas animais que lhe apareciam quando ela se achava em mau estado começavam a mover-se e a atacá-la se alguém fizesse um movimento em sua presença. A exortação final “Não me toque!” provinha das seguintes experiências: contou-me como, quando o irmão estivera muito doente por ter ingerido muita morfina – ela estava com dezenove anos na ocasião – costumava muitas vezes agarrá-la, e como, de outra feita, um conhecido enlouquecera de súbito em sua casa e a tinha segurado pelo braço (houve um terceiro exemplo semelhante, do qual não se recordava com exatidão); e por último, como, quando tinha vinte e oito anos e a filha estava muito doente, a criança se agarrara nela com tanta força em seu delírio que ela quase fora sufocada. Embora esses quatro exemplos fossem tão separados no tempo, ela os relatou numa única frase e numa sucessão tão rápida que poderiam ter constituído um único episódio em quatro atos. A propósito, todos os relatos que me fazia de traumas como esses, dispostos em grupos, começavam por um “como”, sendo os traumas componentes separados por um “e”. Uma vez que percebi que a fórmula protetora se destinava a salvaguardá-la contra uma repetição dessas experiências, eliminei esse medo por meio da sugestão e, de fato, jamais a ouvi dizer a fórmula de novo.
Noite. – Encontrei-a muito animada. Contou-me, sorridente, que se assustara com um cãozinho que havia latido para ela no jardim. Seu rosto, porém, estava um pouco contraído, e havia certa agitação interna, que só desapareceu quando ela me perguntou se eu estava aborrecido com alguma coisa que ela dissera durante a massagem nessa manhã e respondi “não”. Sua menstruação recomeçou hoje, após um intervalo que mal chegou a uma quinzena. Prometi-lhe regulá-la por sugestão hipnótica e, sob hipnose, fixei o intervalo em 28 dias.
Em hipnose, também lhe perguntei se se recordava da última coisa que me contara; ao perguntar-lhe isso, o que eu tinha em mente era uma tarefa que restara da noite passada, mas ela começou, muito corretamente, pelo “não me toque” da hipnose de hoje de manhã. Assim, levei-a de volta ao assunto de ontem. Eu lhe havia perguntado qual a origem de sua gagueira e ela respondera “não sei”. Pedira-lhe, portanto, que se lembrasse disso na hora da hipnose de hoje. Em conseqüência, me respondeu hoje, sem nenhuma reflexão adicional, mas com grande agitação e com dificuldades espásticas na fala: “Como os cavalos certa vez saíram em disparada com as crianças na carruagem; e como outra vez eu estava passando de carruagem pela floresta com as meninas, durante uma tempestade, e uma árvore bem à frente dos cavalos foi atingida por um raio e os cavalos se assustaram e eu pensei: ‘Agora você precisa ficar bem quietinha, senão seus gritos vão assustar os cavalos ainda mais e o cocheiro não conseguirá contê-los de jeito nenhum.’ Surgiu a partir daquele momento.” A paciente ficou extraordinariamente agitada ao contar-me essa história. Soube também por ela que a gagueira tinha começado logo após a primeira dessas duas ocasiões, mas havia desaparecido pouco depois e então se estabelecera de uma vez por todas após a segunda ocasião semelhante. Apaguei sua lembrança plástica dessas cenas, mas pedi-lhe que as imaginasse mais uma vez. Ela pareceu tentar fazê-lo e permaneceu quieta enquanto atendia a meu pedido; a partir de então, falou durante a hipnose sem qualquer impedimento espástico.
Verificando que ela estava disposta a ser comunicativa, perguntei-lhe que outros fatos em sua vida a haviam assustado tanto a ponto de a terem deixado com lembranças plásticas. Ela respondeu fornecendo-me uma coleção de tais experiências: – |1| Como um ano após a morte da mãe, estava visitando uma francesa que era sua amiga, quando lhe disseram que fosse ao quarto contíguo com outra moça para buscar um dicionário e ela viu, sentado na cama, alguém que tinha a aparência idêntica à da mulher que ela acabara de deixar no outro aposento. Ficou toda rígida e pregada no chão. Depois, ficara sabendo que se tratava de um manequim especialmente preparado. Asseverei que o que a paciente tinha visto fora uma alucinação e apelei para seu bom senso, e então seu rosto se relaxou. |2| Como cuidara do irmão enfermo e este tivera acessos terríveis por causa da morfina, aterrorizando-a e agarrando-a. Lembrei que ela já havia mencionado essa experiência hoje de manhã e, a título de experimentação, perguntei-lhe em que outras ocasiões esse “agarramento” havia ocorrido. Para minha agradável surpresa, ela fez uma longa pausa dessa vez antes de responder e então perguntou, num tom de dúvida: “Minha filhinha?” Ficou inteiramente incapaz de recordar-se das outras duas ocasiões (ver atrás |em [1]|). Minha proibição – o apagamento de suas lembranças – tinha sido, portanto, eficaz. – E mais: |3| como, enquanto cuidava do irmão, o rosto pálido da tia havia aparecido de súbito por cima do biombo. Ela acabara de convertê-lo ao catolicismo.
Vi que havia chegado à raiz de seu constante temor das surpresas e pedi-lhe outros exemplos. Prosseguiu: como tinha na casa dela um amigo que gostava de entrar furtivamente no quarto, de modo que de repente estava lá; como ela ficara muito doente após a morte da mãe e fora para uma casa de saúde, e um lunático havia entrado por engano em seu quarto várias vezes, à noite, chegando bem perto de sua cama; e por fim, como, na vinda de Abbazia para cá, um estranho abrira quatro vezes a porta de sua cabine e cada vez fixara nela um olhar demorado. A Sra. Emmy tinha ficado tão apavorada que chegou a chamar o condutor.
Apaguei todas essas lembranças, despertei-a e lhe garanti que ela dormiria bem à noite, tendo deixado de fazer-lhe essa sugestão na hipnose. A melhora de seu estado geral foi revelada por sua observação de que não lera nada hoje, pois estava vivendo num sonho muito feliz – ela, que sempre tinha que estar fazendo alguma coisa em virtude de sua inquietude interior.
11 de maio, manhã. – Hoje teve uma entrevista com o Dr. N., o ginecologista, que deve examinar sua filha mais velha por causa das complicações menstruais. Encontrei a Sra. Emmy bastante agitada, embora isso se traduzisse em sinais físicos mais leves que antes. De vez em quando, exclamava: “Estou com medo, estou com tanto medo que acho que vou morrer.” Perguntei-lhe de que estava com medo. Era o Dr. N.? Não sabia, respondeu; simplesmente estava com medo. Sob a hipnose, que induzi antes da chegada de meu colega, declarou ter medo de que me tivesse ofendido por alguma coisa que dissera durante a massagem, ontem, que lhe parecera indelicada. Também tinha medo de tudo o que era novo e, por conseguinte, do novo médico. Consegui acalmá-la e, embora se assustasse uma ou duas vezes na presença do Dr. N., ela se comportou muito bem e não produziu nenhum de seus estalidos nem houve qualquer inibição da fala. Depois que ele se foi, tornei a colocá-la sob hipnose para eliminar qualquer possível resíduo da excitação provocada pela visita. Ela própria ficou muito contente com seu comportamento e depositou grandes esperanças no tratamento; tentei convencê-la, a partir desse exemplo, de que não é preciso ter medo do que é novo, já que o que é novo também contém o que é bom.
Noite. – Estava muito animada e desabafou um grande número de dúvidas e escrúpulos em nossa conversa antes da hipnose. Durante a hipnose, perguntei-lhe que acontecimento de sua vida havia produzido efeito mais duradouro sobre ela e que mais surgia em sua memória. A morte do marido, respondeu. Fiz com que me descrevesse esse fato com todos os pormenores e ela o fez, com todos os sinais da mais profunda emoção, mas sem nenhum estalido e sem gaguejar: – Como, começou a dizer, tinham ido a um lugar de que ambos gostavam muito na Riviera e, ao atravessarem uma ponte, ele caíra de repente no chão e lá ficara inerte por alguns minutos, mas depois se levantara, parecendo estar muito bem; como, pouco tempo depois, quando ela estava de cama após seu segundo parto, o marido, que estivera tomando o café da manhã numa mesinha ao lado de sua cama e lendo o jornal, levantara-se de súbito, olhando-a de modo muito estranho, dera alguns passos à frente e, em seguida, caíra morto; ela havia se levantado da cama, e os médicos que foram chamados se esforçaram para reanimá-lo, o que ela ouviu do quarto contíguo, mas em vão. E, prosseguiu a Sra. Emmy, como o bebê, que contava então algumas semanas de idade, fora tomado de grave moléstia, que durou seis meses, durante a qual ela própria ficara de cama com muita febre. – E vieram então, em ordem cronológica, suas reclamações contra essa criança, que ela externou rapidamente, com uma expressão zangada no rosto, da maneira como alguém falaria de uma pessoa que se houvesse tornado um incômodo. Essa criança, disse, se comportara de forma muito estranha por longo tempo; gritava o tempo todo e não dormia, e desenvolvera uma paralisia da perna esquerda cuja recuperação parecera apresentar muito poucas esperanças. Aos quatro anos, a criança tivera visões; aprendera a andar e a falar, tardiamente, de modo que por muito tempo fora julgada idiota. De acordo com os médicos, tivera encefalite e mielite e ela não sabia mais o quê. Interrompi-a nesse ponto e a fiz ver que essa mesma criança era hoje uma menina normal, que gozava de perfeita saúde, e impossibilitei-a de voltar a ver qualquer dessas coisas melancólicas, não apenas apagando suas lembranças das mesmas na forma plástica, mas também removendo toda a sua recordação dessas coisas, como se nunca tivessem existido em sua mente. Prometi-lhe que isso a levaria a libertar-se da expectativa de infortúnios que não cessava de atormentá-la e também das dores por todo o corpo, das quais se queixara precisamente durante sua narrativa, depois de passarmos vários dias sem ouvir falar nelas.
Para minha surpresa, depois dessa minha sugestão, ela começou a falar, sem qualquer transição, sobre o Príncipe L., cuja fuga de um hospício era objeto de muitos comentários nessa época. Externou novos temores sobre os hospícios – de que as pessoas que lá se encontravam recebiam duchas de água gelada na cabeça e eram postas num aparelho que as fazia girar ininterruptamente até se acalmarem. Quando, há três dias, ela se queixara pela primeira vez do seu medo dos hospícios, eu a havia interrompido após sua primeira história, a de que os pacientes eram amarrados a cadeiras. Vi então que nada tinha ganho com essa interrupção e que não posso me furtar a escutar suas histórias com todos os detalhes até a última palavra. Depois de reparar essas falhas, livrei-a também dessa nova safra de temores. Apelei para seu bom senso e lhe disse que ela realmente deveria acreditar mais em mim do que na moça tola de quem ouvira aquelas histórias horripilantes sobre a maneira como se trabalha nos hospícios. Como notei que ela às vezes ainda gaguejava ao narrar-me essas outras coisas, perguntei-lhe mais uma vez de onde provinha a gagueira. Nenhuma resposta. – “A senhora não sabe?” – “Não.” – “Por que não?” – “Por que não?” – “Porque não posso saber!” (Pronunciou estas últimas palavras com violência e raiva). Essa declaração me parece ser a prova do êxito de minha sugestão, mas ela me expressou o desejo de que a despertasse da hipnose, e assim fiz.
12 de maio, |manhã|. – Contrariamente a minha expectativa, ela dormira mal e por pouco tempo. Encontrei-a num estado de grande angústia, embora, incidentalmente, sem demonstrar seus costumeiros sinais físicos desta. Não disse o que estava acontecendo, mas apenas que tivera sonhos ruins e ficava vendo as mesmas coisas. “Como seria horrível”, disse, “se eles se tornassem realidade”. Durante a massagem, ela abordou alguns pontos em resposta a minhas perguntas. Ficou alegre então; falou-me de sua vida social na casa do Báltico que lhe coubera por morte do marido, das pessoas importantes que recebe da cidade vizinha, etc.
Hipnose. – Ela tivera alguns sonhos de horror. Os pés e braços das cadeiras se haviam transformado todos em cobras; um monstro com bico de abutre estraçalhava e comia todo o seu corpo; outros animais selvagens saltavam sobre ela, etc. Passou então a outros delírios com animais, que, contudo, qualificou acrescentando: “Isso foi real” (não um sonho): como (numa ocasião anterior) ela fora apanhar um novelo de lã e era um rato que saíra correndo; como estivera fazendo uma caminhada e um grande sapo saltara de repente sobre ela, e assim por diante. Compreendi que minha proibição geral fora ineficaz e que teria de afastar dela suas impressões assustadoras uma a uma. Aproveitei também a oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria de dores gástricas e de onde provinham. (Creio que todos os seus acessos de zoopsia |alucinações com animais| são acompanhados de dores gástricas.) Sua resposta, dada a contragosto, foi que não sabia. Pedi-lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer. Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo: “Quando o levaram embora, não pude acreditar que ele estivesse morto.” (Estava, portanto, falando sobre o marido mais uma vez, e compreendi então que a causa de seu mau humor era que ela estivera sofrendo em virtude dos resíduos não revelados dessa história.) Depois disso, contou-me, odiara a filha por três anos, pois sempre disse a si mesma que talvez tivesse podido restaurar a saúde do marido se não estivesse de cama por causa da criança. Além disso, após a morte do marido, não tinha havido nada senão insultos e agitações. Os parentes dele, que sempre foram contra o casamento e que tinham ficado com raiva por eles serem tão felizes juntos, espalharam o boato de que ela o havia envenenado, de modo que ela desejara abrir um inquérito. Os parentes tinham-na envolvido em toda espécie de processos legais, com a ajuda de um jornalista suspeito. O miserável espalhara agentes a fim de incitar as pessoas contra ela. Fazia com que os jornais locais publicassem artigos difamantes a seu respeito e depois lhe mandava recortes. Essa fora a origem de sua insociabilidade e de seu ódio por todos os estranhos. Após eu dizer algumas palavras tranqüilizadoras sobre o que me contara, ela disse que se sentia melhor.
13 de maio, |manhã|. – Mais uma vez ela dormira mal, por causa de dores gástricas. Não tinha jantado. Também não se queixou de dores no braço direito. Mas estava de bom humor; mostrou-se alegre e, desde ontem, tem-me tratado com especial distinção. Pediu minha opinião sobre toda espécie de coisas que lhe pareciam importantes e ficou excessivamente agitada, por exemplo, quando tive de procurar as toalhas necessárias à massagem, e assim por diante. Seu estalido e seu tique facial eram freqüentes.
Hipnose. – Ontem à noite, súbito lhe ocorrera por que os animaizinhos que ela via se tornavam tão grandes. Isso lhe acontecera pela primeira vez em D -, durante um espetáculo teatral em que um enorme lagarto aparecia em cena. Essa lembrança a havia atormentado muito ontem também.
O motivo do reaparecimento dos estalidos foi que ontem ela teve dores abdominais e tentou não gemer para não demonstrá-las. Não tinha nenhuma idéia da verdadeira causa desencadeadora do estalido (ver em |[1]|.) Também se recordou de que eu lhe dera instruções para descobrir a origem de suas dores gástricas. Não o sabia, contudo, e me pediu que a ajudasse. Perguntei-lhe se, talvez, em alguma ocasião após uma grande excitação, ela se haveria forçado a comer. Ela confirmou isso. Após a morte do marido, perdera inteiramente o apetite por muito tempo e havia comido apenas por um sentimento de obrigação, e as dores gástricas haviam de fato começado naquela época. Eliminei então essas dores passando a mão algumas vezes sobre seu epigástrio. A seguir, por conta própria, ela começou a falar sobre as coisas que mais a haviam afetado. “Já lhe contei”, disse, “que não gostava da criança. Mas devo acrescentar que ninguém poderia adivinhar isso por meu comportamento. Fiz tudo o que era necessário. Até hoje me recrimino por ter gostado mais da primogênita”.
14 de maio, |manhã.| – Estava bem e alegre e dormira até 7h30min da manhã. Queixou-se apenas de ligeiras dores na região radial da mão e na cabeça e rosto. O que ela me diz antes da hipnose vai adquirindo um significado cada vez maior. Hoje não teve quase nada de horrível para apresentar. Queixou-se de dores e perda de sensibilidade na perna direita. Disse-me que teve um surto de inflamação abdominal em 1871; mal se havia recuperado, ficou tratando do irmão doente, e foi então que as dores apareceram pela primeira vez, chegando até a levar a uma paralisia temporária da perna direita.
Durante a hipnose, perguntei-lhe se agora lhe seria possível participar da vida social, ou se ainda estava muito temerosa. Respondeu-me que ainda lhe era desagradável ter alguém de pé atrás dela ou mesmo a seu lado. A esse respeito, falou-me de outras ocasiões em que fora desagradavelmente surpreendida pelo súbito aparecimento de alguém. Certa feita, por exemplo, quando passeava com as filhas na ilha de Rügen, dois indivíduos de aparência suspeita haviam saído de uns arbustos e lhes dirigido insultos. Em Abbazia, quando estava passeando certa noite, um mendigo saíra de repente de detrás de uma pedra e se ajoelhara diante dela. Parece que era um louco inofensivo. Por último, contou-me como sua isolada casa de campo fora arrombada à noite, o que muito a havia alarmado. É fácil ver, entretanto, que a origem essencial desse medo das pessoas foi a perseguição a que ela se viu sujeita após a morte do marido.
Noite. – Embora parecesse muito animada, saudou-me com a exclamação: “Estou morta de medo; oh, mal posso lhe dizer, eu me odeio!” Afinal fui informado de que ela havia recebido a visita do Dr. Breuer e levara um susto ao vê-lo aparecer. Como ele percebeu isso, ela lhe assegurou que fora “só aquela vez”. Ficou profundamente penalizada por minha causa, por ter traído esse vestígio de seu antigo nervosismo. Em mais de uma ocasião tive oportunidade de notar, nestes últimos dias, o quanto ela é severa consigo mesma, como tende a se culpar com severidade pelos ínfimos sinais de negligência – quando as toalhas para a massagem não estão em seu lugar habitual ou quando o jornal para eu ler enquanto ela adormece não se encontra prontamente à mão. Após a eliminação da primeira e mais superficial camada de lembranças torturantes, sua personalidade moralmente supersensível, com tendência à autodepreciação, veio à tona. Tanto em seu estado de vigília como sob a hipnose, eu lhe disse (o que correspondeu ao velho preceito legal “de minimis non curat lex” que existe uma multidão de coisinhas insignificantes entre o que é bom e o que é mau – coisas sobre as quais ninguém precisa censurar-se. Ela não aceitou minha lição, suponho, tal como não o faria um monge medieval, que vê o dedo de Deus ou a tentação do Demônio em cada fato trivial de sua vida e que é incapaz de imaginar o mundo, sequer por um momento fugaz ou em seu menor recanto, como destituído de uma referência a ele próprio.
Em sua hipnose, ela trouxe à baila algumas outras imagens apavorantes (em Abbazia, por exemplo, via cabeças ensangüentadas em cada onda do mar). Fi-la repetir as instruções que lhe dera enquanto estava acordada.
15 de maio, |manhã.| – Ela dormira até as 8h30min da manhã, mas depois ficara inquieta, tendo-me recebido com ligeiros sinais de seu tique, dos estalidos e da inibição da fala. “Estou morta de medo”, disse mais uma vez. Em resposta a uma pergunta, falou-me que a pensão onde se encontravam suas filhas ficava no quarto andar de um prédio e lá se chegava de elevador. Ontem havia insistido em que as filhas usassem o elevador tanto para descer como para subir, e agora se recriminava por isso, porque não se devia confiar inteiramente no ascensor. O próprio dono da pensão tinha dito isso. Teria eu ouvido, perguntou, a história da Condessa Sch., que encontrara a morte em Roma num acidente dessa natureza? Por coincidência, conheço essa pensão e sei que o elevador é propriedade particular do dono da mesma; não me parece provável que esse homem, que chama uma atenção especial para o elevador num anúncio, fosse ele próprio advertir alguém contra sua utilização. Pareceu-me que teríamos aí uma das paramnésias acarretadas pela angústia. Dei a minha opinião à Sra. Emmy e consegui, sem nenhuma dificuldade, fazê-la rir da improbabilidade de seus temores. Exatamente por essa razão, não pude acreditar que esta fosse a causa da sua angústia e decidi formular a pergunta a sua consciência hipnótica. Durante a massagem, que hoje reiniciei após um intervalo de alguns dias, ela me contou uma série de histórias sem ligação umas com as outras, que talvez tenham sido reais – sobre um sapo que foi encontrado num porão, uma mãe excêntrica quecuidava do filho idiota de maneira estranha, uma mulher que foi trancada num hospício porque sofria de melancolia – e que revelavam o tipo de recordações que lhe passavam pela cabeça quando ela estava intranqüila. Depois de se livrar dessas histórias, ficou muito animada. Descreveu a vida em sua propriedade e seus contatos com homens preeminentes da Rússia teutônica e da Alemanha setentrional e, na verdade, achei extremamente difícil conciliar atividades desse tipo com o quadro de uma mulher tão gravemente neurótica.
Assim, perguntei-lhe em sua hipnose por que ela estava tão desassossegada esta manhã. Em vez de suas dúvidas sobre o elevador, informou-me ter sentido medo de que sua menstruação recomeçasse e tornasse a interferir na massagem.
Fiz então com que ela me contasse a história das dores na perna. Começou da mesma forma que ontem |falando sobre haver cuidado do irmão| e prosseguiu com uma longa série de exemplos de experiências, alternadamente aflitivas e irritantes, que tivera ao mesmo tempo que as dores na perna e cujo efeito fora o de torná-las cada vez piores, até mesmo a ponto de ela ficar com paralisia bilateral e perda de sensibilidade nas pernas. O mesmo se aplicava às dores do braço. Elas também surgiram enquanto a paciente cuidava de algum doente, ao mesmo tempo que as cãibras no pescoço.”Quanto a estas, fiquei sabendo apenas que se seguiram a alguns curiosos estados de inquietude acompanhados de depressão, que já existiam antes. Consistem num “aperto gelado” na nuca, juntamente com o surgimento da rigidez e um frio doloroso em todas as extremidades da paciente, incapacidade de falar e completa prostração. Duram de seis a doze horas. Falharam minhas tentativas de demonstrar que esse complexo de sintomas representava uma lembrança. Fiz-lhe algumas perguntas com a finalidade de descobrir se seu irmão, enquanto a paciente o assistia durante o delírio dele, alguma vez a agarrara pelo pescoço; mas ela negou e disse não saber de onde provinham esses acessos.
Noite. – Ela estava muito animada e demonstrava grande senso de humor. Contou-me, aliás, que o caso do elevador não era como me havia relatado. O proprietário só dissera aquilo para dar uma desculpa pelo fato de o elevador não ser utilizado para descer. Ela me fez um grande número de perguntas que nada tinham de patológicas. Tem sofrido de lancinantes dores no rosto, na mão junto ao polegar e na perna. Fica rígida e sente dores no rosto se ficar sentada sem se mexer ou se olhar fixamente para algum ponto por um período considerável de tempo. Quando levanta qualquer coisa pesada, isso lhe causa dores no braço. – O exame da perna direita revelou sensibilidade relativamente boa na coxa, alto grau de insensibilidade na parte inferior da perna e no pé e menor na região das nádegas e do quadril.
Sob hipnose, ela me informou que ocasionalmente ainda tem idéias assustadoras, como a de que algo pode acontecer com suas filhas, que elas poderiam adoecer ou morrer, ou que o irmão dela, que está agora em lua-de-mel, poderia sofrer um acidente, ou que a esposa dele poderia morrer (porque os casamentos de todos os seus irmãos e irmãs tinham sido muito curtos). Não consegui arrancar da paciente quaisquer outros temores. Proibi-a de sentir qualquer necessidade de se assustar quando não houvesse nenhum motivo para isso. Prometeu-me desistir disso “porque o senhor está pedindo”. Dei-lhe outras sugestões quanto às dores, à perna, etc.
16 de maio, |manhã|. – Ela havia dormindo bem. Queixava-se ainda de dores no rosto, braços e pernas. Estava muito alegre. Sua hipnose não rendeu nada. Apliquei um pincel farádico em sua perna insensibilizada.
Noite. – Sobressaltou-se assim que entrei: “Estou muito contente com sua vinda”, disse, “estou muito assustada”. Ao mesmo tempo, dava todos os sinais de terror, juntamente com a gagueira e o tique. Primeiro fiz com que me contasse, em estado de vigília, o que tinha acontecido. Retorcendo os dedos e estendendo as mãos para a frente, pintou um quadro nítido de seu terror ao dizer: “Um camundongo enorme passou de repente sobre minha mão no jardim e desapareceu num segundo; as coisas ficaram deslizando para trás e para a frente.” (Uma ilusão do jogo de sombras?) “Um bando inteiro de ratinhos estava sentado nas árvores. – O senhor não está ouvindo os cavalos batendo com as patas no circo? – Há um homem gemendo no quarto ao lado; deve estar sentindo dores depois de sua operação. – Será que estou em Rügen? Eu tinha uma estufa como essa lá?” Ela estava confusa com a multidão de pensamentos que se entrecruzavam em seu cérebro e com o esforço que fazia para separá-los do ambiente que a cercava de fato. Quando lhe formulei perguntas sobre coisas atuais, tais como se as filhas estavam aqui, não soube dar nenhuma resposta.
Tentei desembaraçar por meio da hipnose a confusão que lhe ia pela mente. Perguntei-lhe o que era que a assustava. Repetiu a história do camundongo, com todos os sinais de terror, e acrescentou que, quando descia os degraus, viu um animal horrível deitado, que desapareceu imediatamente. Disse-lhe que isso eram alucinações e lhe instruí para que não se assustasse com os camundongos; só os bêbados é que os viam (ela detestava bêbados). Contei-lhe a história do Bispo Hatto. Ela também a conhecia, e ouviu-a horrorizada. – “Como foi que a senhora veio a pensar no circo?” perguntei-lhe então. Disse-me que tinha ouvido claramente os cavalos batendo com as patas nos estábulos ali perto e acabando presos nos arreios, o que poderia machucá-los. Quando isso acontecia, Johann costumava sair para desamarrá-los. Neguei que houvesse estábulos por perto ou que alguém no quarto contíguo tivesse gemido. Ela sabia onde estava? Respondeu que agora sabia, mas antes pensara estar em Rügen. Perguntei-lhe como tinha chegado a essa lembrança. Tinham estado conversando no jardim, disse, sobre como fazia calor numa parte dele, e imediatamente lhe viera a idéia do terraço sem sombra em Rügen. Muito bem, perguntei-lhe, quais eram as recordações tristes que guardava de sua estada em Rügen? Ela citou uma série delas. Lá sentira as dores mais terríveis nas pernas e nos braços; quando saía em excursões, fora várias vezes apanhada por um nevoeiro e se perdera; duas vezes, quando passeava, um touro tinha corrido atrás dela, e assim por diante. Como é quando tinha tido essa crise hoje? – Como (respondeu)? Escrevera grande número de cartas; tinha levado três horas e isso lhe deixara a cabeça confusa. – Pude presumir, por conseguinte, que seu surto delirante fora provocado pelo cansaço e que seu conteúdo fora determinado por associações tais como a do lugar sem sombra do jardim, etc. Repeti todos os conselhos que tinha o hábito de lhe dar e deixei-a recomposta para dormir.
17 de maio, |manhã|. – Ela passou a noite muito bem. No banho de farelo que tomou hoje, deu alguns gritos, por ter confundido o farelo com vermes. Fui informado disso pela enfermeira. A própria paciente relutou em falar-me a respeito. Estava quase exageradamente alegre, mas interrompia-se com exclamações de horror e asco e fazia caretas que expressavam terror. Também gaguejou mais do que nos últimos dias. Contou-me haver sonhado, na noite passada, que estava caminhando sobre uma porção de sanguessugas. Na noite anterior tinha tido sonhos horríveis. Tivera que amortalhar um grande número de defuntos e colocá-los em caixões, mas não os tampava. (Obviamente, uma lembrança do marido.) Disse-me ainda que, no decurso de sua vida, tivera inúmeros incidentes com animais. O pior tinha sido com um morcego que ficara preso em seu guarda-roupa, de modo que ela se precipitara para fora do quarto sem nenhuma roupa. Para curá-la desse medo, o irmão lhe dera um belo broche com a forma de um morcego, mas ela nunca pudera usá-lo.
Sob hipnose, explicou-me que seu medo de vermes provinha de ter recebido como presente, certa vez, uma linda almofada para alfinetes; na manhã seguinte, porém, quando quis usá-la, uma porção de vermezinhos saíram da almofada, que tinha sido enchida com farelo que não estava bem seco. (Uma alucinação? Talvez um fato real.) Pedi-lhe que me contasse outras histórias de animais. Certa feita, disse ela, quando passeava com o marido num parque de São Petersburgo, todo o caminho que levava a um pequeno lago estava recoberto de sapos, de modo que foram obrigados a voltar. Houve épocas em que ela ficara impossibilitada de estender a mão para qualquer pessoa, temendo que a mão se transformasse num animal terrível, como tantas vezes tinha acontecido. Tentei libertá-la de seu medo de animais designando-os um por um e perguntando-lhe se tinha medo deles. Em alguns casos, respondeu “não”; em outros, “não devo ter medo deles”. Perguntei-lhe por que havia gaguejado e se mexido tanto ontem. Respondeu que sempre fazia isso quando estava muito assustada. – Mas por que tinha estado tão assustada ontem? – Porque todas as espécies de pensamentos opressivos lhe haviam passado pela cabeça no jardim: em particular, a idéia de como poderia impedir que algo se acumulasse de novo dentro dela depois que seu tratamento terminasse. Repeti as três razões que eu já lhe tinha dado para sentir-se reassegurada: (1) que ela se tornara mais sadia e mais capaz de ter resistência, (2) que adquiriria o hábito de contar seus pensamentos a alguém com quem mantivesse estreitas relações, e (3) que, daí por diante, consideraria indiferente um grande número de coisas que até então a haviam oprimido. Ela prosseguiu dizendo que também estivera preocupada porque não me havia agradecido pela visita que eu lhe fizera ao fim do dia, e temia que eu perdesse a paciência com ela em vista de sua recente recaída. Ficara muito perturbada e alarmada porque o médico interno perguntara a um senhor no jardim se ele agora se sentia capaz de enfrentar sua operação. A esposa estava sentada ao lado dele, e ela (a paciente) não pôde deixar de pensar que talvez aquela fosse a última noite do pobre homem. Após esta última explicação, sua depressão pareceu dissipar-se.
Noite. – Ela estava muito animada e satisfeita. A hipnose não produziu absolutamente nada. Dediquei-me a cuidar de suas dores musculares e restaurar-lhe a sensibilidade da perna direita. Isso foi conseguido com muita facilidade na hipnose, mas sua sensibilidade restaurada tornou a perder-se parcialmente quando ela despertou. Antes de eu deixá-la, externou seu espanto de que há tanto tempo não tivesse cãibras no pescoço, já que elas costumavam sobrevir antes de cada tempestade.
18 de maio. – Há anos não dormia tão bem como na noite passada. Depois do banho, porém, queixou-se de frio na nuca, contrações e dores no rosto, nas mãos e nos pés. Suas feições estavam tensas, e os punhos, cerrados. A hipnose não revelou qualquer conteúdo psíquico subjacente às cãibras no pescoço. Melhorei-as através de massagens, depois que ela havia despertado.
Espero que este resumo do histórico das três primeiras semanas do tratamento seja suficiente para fornecer um quadro nítido do estado da paciente, da natureza de meus esforços terapêuticos e da medida de seu êxito. Passarei agora a ampliar o relato do caso.
O delírio que acabo de descrever foi também a última perturbação importante no estado da Sra. Emmy von N. Visto que eu não tomava a iniciativa de procurar os sintomas e sua base, mas esperava que algo surgisse na paciente ou que ela me revelasse algum pensamento que lhe estivesse causando angústia, suas hipnoses logo deixaram de produzir material. Assim, passei a usá-las principalmente com a finalidade de proporcionar-lhe máximas que ficassem sempre em sua mente e que a protegessem contra recaídas em estados semelhantes quando voltasse para casa. Naquela época, eu estava sob total influência do livro de Bernheim sobre sugestão e previa mais resultados dessas medidas didáticas do que o faria hoje. O estado de minha paciente melhorou tão depressa que ela logo me assegurou que não se sentia tão bem desde a morte do marido. Após um tratamento que durou ao todo sete semanas, permiti-lhe que voltasse para sua casa no Báltico.
Não fui eu, mas o Dr. Breuer, quem recebeu notícias dela cerca de sete meses depois. Seu estado de saúde continuara bom durante vários meses, mas depois havia voltado a piorar como resultado de um novo choque psíquico. Sua filha mais velha, durante a primeira estada de ambas em Viena, já havia tido, como a mãe, cãibras no pescoço e ligeiros estados histéricos; em particular, porém, sofrera de dores ao andar, em virtude de uma retroversão do útero. A conselho meu, procurara para tratamento o Dr. N., um de nossos mais famosos ginecologistas, que recolocara o útero em sua posição por meio de massagens, havendo ela ficado livre de problemas durante vários meses. Seus problemas reapareceram, contudo, enquanto as duas estavam em casa, e a mãe chamou um ginecologista da cidade universitária vizinha. Ele receitou para a moça um tratamento local e geral que, todavia, acarretou uma grave doença nervosa (ela estava, na época, com dezessete anos). É provável que isso já fosse um indício da sua predisposição patológica que iria manifestar-se um ano depois numa alteração do caráter. |Ver em [1].| A mãe, que havia entregue a moça às mãos dos médicos com sua habitual mistura de docilidade e desconfiança, foi dominada pelas mais violentas auto-recriminações após o infeliz resultado do tratamento. Uma associação de idéias que eu não tinha investigado levou-a à conclusão de que eu e o Dr. N. éramos os responsáveis pela doença da filha, porque havíamos feito pouco caso da gravidade de seu estado. Por um ato de vontade, por assim dizer, ela desfez os efeitos do meu tratamento e de imediato recaiu nos estados dos quais eu a havia libertado. Um ilustre médico de suas redondezas, a quem procurou para obter orientação, juntamente com o Dr. Breuer, que se correspondia com ela, conseguiram convencê-la da inocência dos dois alvos de suas acusações; mas, mesmo depois que isso se dissipou, a aversão formada contra mim nessa época permaneceu como um resíduo histérico, e ela declarou que lhe era impossível reiniciar o tratamento comigo. A conselho da mesma autoridade médica, recorreu à ajuda de um sanatório na Alemanha setentrional. Por desejo de Breuer, expliquei ao médico encarregado as modificações da terapia hipnótica que eu julgara eficazes no caso dessa paciente.
Essa tentativa de transferência falhou completamente. Desde o início ela parece ter mostrado uma disposição contrária ao médico. Esgotava-se na resistência ao que quer que fosse feito por ela. Ficou deprimida, perdeu o sono e o apetite e só se recuperou depois que uma amiga sua, que foi visitá-la no sanatório, na verdade a seqüestrou às escondidas e tratou-a em sua casa. Pouco tempo depois, exatamente um ano após seu primeiro encontro comigo, ela estava de novo em Viena e mais uma vez se entregou a meus cuidados.
Achei-a muito melhor do que esperava pelos relatos que recebera por carta. Podia movimentar-se e estava livre da angústia, e grande parte do que eu conseguira um ano antes ainda se mantinha. Sua principal queixa era com relação a freqüentes estados de confusão – “tempestades na cabeça”, como as denominava. Além disso, sofria de insônia e muitas vezes ficava em prantos por horas a fio. Sentia-se triste numa determinada hora do dia (cinco horas). Esse era o horário habitual em que, no inverno, pudera visitar a filha na casa de saúde. Gaguejava e emitia o estalido com grande freqüência e esfregava as mãos como se estivesse enfurecida, e quando lhe perguntei se estava vendo muitos animais, apenas respondeu: “Oh, fique quieto!”
À minha primeira tentativa de induzir a hipnose, cerrou os punhos e exclamou: “Não deixarei que me apliquem nenhuma injeção antipirética; prefiro ter minhas dores! Não gosto do Dr. R.; ele me é antipático.” Compreendi que ela estava presa à lembrança de ser hipnotizada no sanatório, e acalmou-se tão logo eu a trouxe de volta à situação atual.
Logo no início do tratamento |reiniciado| tive uma experiência instrutiva. Eu lhe havia perguntado há quanto tempo a gagueira voltara, e ela respondera de forma hesitante (sob hipnose) que tinha sido desde um choque que experimentara em D – durante o inverno. Um garçom do hotel em que estava hospedada havia se escondido em seu quarto de dormir. Na escuridão, disse ela, confundira o objeto com um sobretudo e estendera a mão para apanhá-lo, tendo o homem de repente “dado um pulo para o alto”. Eliminei essa imagem mental e, de fato, a partir daquele momento, ela deixou de gaguejar visivelmente, quer na hipnose, quer na vida de vigília. Não me recordo do que foi que me levou a testar o êxito da minha sugestão, mas quando voltei na mesma noite, perguntei-lhe, num tom aparentemente inocente, como eu poderia trancar a porta quando fosse embora (quando ela estivesse deitada dormindo), de modo que ninguém pudesse entrar furtivamente no quarto. Para meu assombro, ela levou um susto horrível e começou a rilhar os dentes e esfregar as mãos. Revelou que tivera um choque violento desse tipo em D -, mas não consegui persuadi-la a me contar a história. Percebi que tinha em mente a mesma história que me narrar aquela manhã, durante a hipnose, e que eu julgara haver apagado. Em sua hipnose seguinte, contou-me a história com maior riqueza de detalhes e maior verossimilhança. Agitada, estivera andando pelo corredor de um lado para o outro e encontrara aberta a porta do quarto da empregada. Tentou entrar e sentar-se. A empregada lhe bloqueou o caminho, mas a paciente não se deixou deter e entrou, e foi então que viu contra a parede o objeto escuro que veio a se revelar como sendo um homem. Evidentemente, o fator erótico dessa pequena aventura é que a levara a fazer um relato falso da mesma. Isso me ensinou que uma história incompleta sob hipnose não produz nenhum efeito terapêutico. Acostumei-me a considerar incompleta qualquer história que não trouxesse nenhuma melhora, e aos poucos tornei-me capaz de ler nos rostos dos pacientes se eles não estariam ocultando uma parte essencial de suas confissões.
O trabalho que tive de levar a efeito com ela nessa ocasião consistiu em lidar, por meio da hipnose, com as impressões desagradáveis que ela recebera durante o tratamento da filha e quando de sua própria estada no sanatório. Ela estava cheia de raiva, reprimida, pelo médico que a tinha obrigado, sob hipnose, a soletrar a palavra “s…a…p…o” e me fez prometer que jamais a faria dizer isso. A esse respeito, aventurei-me a fazer uma brincadeira prática numa de minhas sugestões a ela. Este foi o único abuso da hipnose – aliás um abuso muito inocente – cuja culpa para com essa paciente tenho de confessar. Assegurei-lhe que sua estada no sanatório em “-tal” |“vale”| se tornaria tão remota para ela que nem sequer conseguiria lembrar-se do nome, e sempre que quisesse referir-se a ele hesitaria entre “-berg” |“colina”|, “-tal”, “-wald” |“bosque”|, e assim por diante. Isso efetivamente aconteceu, e logo o único sinal remanescente de sua inibição da fala foi sua incerteza sobre esse nome. Por fim, após uma observação do Dr. Breuer, aliviei-a dessa paramnésia compulsiva.
Travei com o que ela descrevia como “as tempestades na cabeça” uma luta mais longa do que com os resíduos dessas experiências. Quando a vi pela primeira vez num desses estados, estava deitada no sofá com as feições transtornadas e todo o corpo em permanente agitação. Ficava a pressionar a testa com as mãos e a chamar, em tons de súplica e desânimo, o nome “Emmy”, que era o de sua filha mais velha e também o seu. Sob hipnose, confessou-me que esse estado era uma repetição dos numerosos acessos de desespero pelos quais se vira dominada durante o tratamento da filha, quando, depois de passar horas tentando descobrir algum meio de corrigir seus efeitos negativos, não se lhe apresentava nenhuma saída. Quando, em tais ocasiões, sentia que seus pensamentos ficavam confusos, adotava o hábito de chamar pelo nome da filha, de modo que pudesse ajudá-la a desanuviar a cabeça; e isso porque, durante o período em que a doença da filha lhe estava impondo novos deveres e ela sentia que seu próprio estado nervoso mais uma vez começava a dominá-la, ela determinou que o que quer que tivesse a ver com a moça devia ficar isento de confusão, por mais caótico que tudo o mais pudesse estar em sua cabeça.
No decurso de algumas semanas conseguimos eliminar também essas lembranças, e a Sra. Emmy permaneceu sob minha observação por mais algum tempo, sentindo-se perfeitamente bem. Ao final da sua estada aconteceu algo que passarei a descrever com pormenores, visto que lança a mais intensa luz sobre o caráter da paciente e a maneira pela qual seus estados se produziam.
Visitei-a um belo dia na hora do almoço e surpreendi-a no ato de atirar no jardim algo embrulhado em papel, que foi apanhado pelos filhos do porteiro. Em resposta à minha pergunta, ela admitiu que era o seu pudim (seco) e que a mesma coisa acontecia todos os dias. Isso me levou a investigar o que sobrava dos outros pratos e verifiquei que restava mais da metade da comida. Quando lhe perguntei por que comia tão pouco, respondeu que não tinha o hábito de comer mais e que passava mal se o fizesse; a Sra. Emmy tinha a mesma constituição do pai, que também tinha o hábito de comer pouco. Quando lhe perguntei o que bebia, disse-me que só podia tolerar líquidos espessos, como leite, café ou chocolate; beber água, comum ou mineral, lhe perturbava a digestão. Isso tinha todos os sinais de uma escolha neurótica. Tirei uma amostra de sua urina e verifiquei que estava altamente concentrada e sobrecarregada de uratos.
Julguei portanto aconselhável recomendar-lhe que bebesse mais e resolvi também aumentar a quantidade de seus alimentos. É verdade que ela de modo algum parecia magra a ponto de chamar atenção, mas mesmo assim achei que valeria a pena fazê-la comer mais um pouco. Quando, em minha visita seguinte, ordenei-lhe que ingerisse água alcalina e proibi-a de lidar com o pudim da maneira como fazia, demonstrou agitação considerável. “Farei isso porque o senhor está pedindo”, disse “mas posso dizer-lhe de antemão que dará mau resultado, porque é contrário à minha natureza, e o mesmo aconteceu com meu pai”. Quando lhe perguntei sob hipnose por que não podia comer mais nem beber água, respondeu num tom mal-humorado: “Não sei.” No dia seguinte, a enfermeira informou que ela havia comido tudo o que lhe fora servido e bebera um copo de água alcalina. Mas encontrei a própria Sra. Emmy numa profunda depressão e num estado de humor muito irritado. Queixou-se de sentir dores gástricas muito violentas. “Eu lhe disse o que aconteceria”, falou. “Sacrificamos todos os bons resultados pelos quais vimos lutando há tanto tempo. Estraguei minha digestão, como sempre acontece quando como mais ou bebo água, e agora terei de morrer de fome por cinco dias a uma semana antes que possa tolerar qualquer coisa.” Assegurei-lhe que não havia nenhuma necessidade de ela morrer de fome e que era impossível estragar a digestão dessa forma: suas dores se deviam somente à angústia em relação a comer e beber. Ficou claro que essa explicação minha não causou nela a mais leve impressão, pois quando, logo depois, tentei fazê-la dormir, pela primeira vez não consegui provocar a hipnose; e o olhar furioso que ela me dirigiu convenceu-me de que estava em franca rebelião e de que a situação era muito grave. Desisti de tentar hipnotizá-la e anunciei que lhe daria vinte e quatro horas para pensar bem e aceitar a opinião de que suas dores gástricas provinham apenas de seu medo. No fim desse período, eu lhe perguntaria se ainda era de opinião que sua digestão podia ser estragada por uma semana pela ingestão de um copo de água mineral e de uma modesta refeição; se ela dissesse que sim, eu lhe pediria que fosse embora. Essa pequena cena apresentava um acentuado contraste com nossas relações normais, que eram as mais amistosas.
Encontrei-a vinte e quatro horas depois, dócil e submissa. Quando lhe perguntei o que pensava sobre a origem de suas dores gástricas, ela respondeu, porque era incapaz de subterfúgios: “Penso que provêm da minha angústia, mas só porque o senhor é dessa opinião.” Em seguida, coloquei-a em hipnose e perguntei mais uma vez: “Por que a senhora não consegue comer mais?”
A resposta veio prontamente e consistiu, mais uma vez, numa série de razões dispostas em ordem cronológica a partir de seu acervo de lembranças: “Estou pensando em como, quando eu era criança, muitas vezes acontecia que, por malcriação, recusava-me a comer carne ao jantar. Minha mãe era muito severa a esse respeito e, sob a ameaça de um castigo exemplar, eu era obrigada, duas horas depois, a comer a carne, que era deixada no mesmo prato. A essa altura a carne já estava muito fria e a gordura, muito dura” (ela demonstrou sua repulsa) “…Ainda posso ver o garfo na minha frente… um de seus dentes era meio torto. Sempre que me sento à mesa vejo os pratos diante de mim, com a carne e a gordura frias. E me lembro como, muitos anos depois, morei com meu irmão, que era oficial e teve aquela doença horrível. Eu sabia que era contagiosa e tinha um medo terrível de apanhar sua faca e seu garfo por engano” (estremeceu) “…e apesar disso, fazia minhas refeições com ele, para que ninguém soubesse que ele estava doente. E como, logo depois disso, cuidei de meu outro irmão quando esteve muito doente de tuberculose. Sentávamos ao lado de sua cama, e a escarradeira ficava sempre sobre a mesa, aberta” (estremeceu de novo) “…ele tinha o hábito de escarrar por sobre os pratos na escarradeira. Isso sempre me provocava muita náusea, mas eu não podia demonstrá-la, temendo magoar os sentimentos dele. E essas escarradeiras ainda estão na mesa sempre que faço uma refeição, e ainda me causam náuseas.” Naturalmente, removi com cuidado todo esse conjunto de fomentadores da repulsa e então lhe perguntei por que ela não conseguia beber água. Quando tinha dezessete anos, respondeu, a família havia passado alguns meses em Munique e quase todos os membros haviam contraído catarro gástrico, graças à água potável de má qualidade. No caso dos outros, o distúrbio foi logo aliviado pelos cuidados médicos, mas com ela havia persistido. Tampouco melhorara com a água mineral que lhe fora recomendada. Quando o médico a receitou, ela logo pensou: “isso não vai adiantar nada”. A partir daquela ocasião, essa intolerância pela água comum e pela água mineral repetiu-se inúmeras vezes.
O efeito terapêutico dessas descobertas sob hipnose foi imediato e duradouro. Ela não passou fome durante uma semana, mas logo no dia seguinte comeu e bebeu sem nenhuma dificuldade. Dois meses depois, informou-me numa carta: “Estou comendo muitíssimo bem e ganhei bastante peso. Já bebi quarenta garrafas de água. O senhor acha que devo continuar?”
Revi a Sra. von N. na primavera do ano seguinte em sua propriedade rural perto de D-. Nessa ocasião, sua filha mais velha, por cujo nome ela havia chamado durante suas “tempestades na cabeça”, entrou numa fase de desenvolvimento anormal. Exibia ambições desenfreadas, inteiramente desproporcionais a seus escassos dons, e tornou-se desobediente e até violenta para com a mãe. Eu ainda gozava da confiança da Sra. Emmy e fui chamado para dar minha opinião sobre o estado da moça. Tive uma impressão desfavorável da alteração psicológica que se processara na jovem e, para chegar a um prognóstico, também tive que levar em conta o fato de que todos os seus meio-irmãos e irmãs (os filhos do primeiro matrimônio do Sr. von N.) tinham sucumbido à paranóia. Também na família de sua mãe não faltava uma hereditariedade neuropática, embora nenhum de seus parentes mais próximos houvesse desenvolvido psicose crônica. Comuniquei à Sra. von N., sem qualquer reserva, a opinião que me havia pedido, e ela a recebeu com calma e compreensão. Ela havia engordado, e sua saúde era florescente. Tinha-se sentido relativamente bem durante os nove meses decorridos desde o término de seu último tratamento. Fora perturbada apenas por ligeiras cãibras no pescoço e outros males de pequena monta. Nos vários dias que passei em sua casa vim a compreender, pela primeira vez, toda a extensão de seus deveres, ocupações e interesses intelectuais. Conheci também o médico da família, que não tinha muitas queixas da paciente: logo, até certo ponto, ela fizera as pazes com a profissão médica.
Em inúmeros aspectos, portanto, ela estava mais saudável e mais apta; porém, apesar de todas as minhas sugestões de melhora, verificara-se pouca alteração em seu caráter fundamental. Ela não parecia ter aceito a existência de uma categoria de “coisas sem importância”. Sua inclinação para atormentar-se era muito pouco menor do que na época do tratamento, e tampouco sua disposição histérica estivera estagnada durante esse bom período. Ela se queixava, por exemplo, de uma impossibilidade de fazer viagens de trem, de qualquer duração. Isso aparecera nos últimos meses. Uma tentativa necessariamente apressada de aliviá-la dessa dificuldade resultou apenas na produção de diversas impressões desagradáveis e insignificantes deixadas por algumas viagens recentes que ela fizera a D- e suas imediações. Entretanto, ela parecia relutar em ser comunicativa sob hipnose, e comecei mesmo a suspeitar de que estava a ponto de se afastar mais uma vez da minha influência e de que a finalidade secreta de sua inibição em relação aos trens era impedir que fizesse uma nova viagem a Viena.
Foi também durante esses dias que ela formulou suas queixas a respeito de lacunas na memória, “em especial quanto aos fatos mais importantes” |ver em [1]|, donde concluí que o trabalho que eu executara dois anos antes tinha sido inteiramente eficaz e duradouro. – Um dia, ela passeava comigo por uma avenida que se estendia da casa até uma enseada no mar e me arrisquei a perguntar se o caminho costumava ficar infestado de sapos. Como resposta, ela me lançou um olhar de censura, embora não acompanhado de sinais de horror; ampliou isso um momento depois, com as palavras “mas os daqui são reais”. Durante a hipnose, que induzi para lidar com sua inibição a respeito dos trens, ela própria pareceu insatisfeita com as respostas que me deu e externou o temor de que, no futuro, era provável que fosse menos obediente sob hipnose do que antes. Decidi-me a convencê-la do contrário. Escrevi algumas palavras num pedaço de papel, entreguei-o a ela e disse: “No almoço de hoje a senhora me servirá um copo de vinho tinto, da mesma forma que ontem. Quando eu levar o copo aos lábios, a senhora dirá: ‘Oh, por favor, sirva-me também um copo de vinho’, e quando eu estender a mão para apanhar a garrafa, dirá: ‘Não, obrigada; afinal, acho que não vou querer’. A senhora então porá a mão em sua bolsa, retirará dela um pedaço de papel e encontrará essas mesmas palavras escritas nele”. Isso foi pela manhã. Algumas horas depois, o pequeno episódio ocorreu exatamente como eu o havia predisposto, e de maneira tão natural que nenhuma das muitas pessoas presentes notou qualquer coisa. Quando me pediu o vinho, ela revelou visíveis sinais de uma luta interna – pois nunca bebia vinho – e depois de haver recusado a bebida com evidente alívio, pôs a mão na bolsa e retirou o pedaço de papel em que figuravam as últimas palavras que havia pronunciado. Balançou a cabeça e olhou-me com assombro.
Após minha visita em maio de 1890, minhas notícias da Sra. von N.foram ficando cada vez mais escassas. Soube indiretamente que o estado deplorável da filha, que lhe causava todas as espécies de aflições e agitações, acabou por minar-lhe a saúde. Por fim, no verão de 1893, recebi dela um bilhete pedindo-me permissão para ser hipnotizada por outro médico, visto que voltara a ficar doente e não podia vir a Viena. A princípio, não compreendi por que minha permissão era necessária, até me recordar que, em 1890, por sua própria solicitação, eu a havia protegido de ser hipnotizada por qualquer outra pessoa, para que não houvesse nenhum risco de ela ficar aflita ao se colocar sob o controle de algum médico que lhe fosse antipático, tal como acontecera em -berg (-tal, -wald). Por conseguinte, renunciei por escrito a minha prerrogativa exclusiva.
DISCUSSÃO
A menos que tenhamos em primeiro lugar chegado a um acordo completo sobre a terminologia em jogo, não é fácil resolver se um caso particular deve ser considerado como sendo de histeria ou de alguma outra neurose (refiro-me aqui às neuroses que não são de tipo puramente neurastênico); e ainda temos de aguardar a mão orientadora que fixará os marcos fronteiriços na região das neuroses mistas, que ocorrem comumente, e que trará à tona os aspectos essenciais para a caracterização destas. Por conseguinte, se ainda estivermos acostumados a diagnosticar uma histeria, no sentido mais estrito do termo, por sua semelhança com casos típicos já conhecidos, dificilmente poderemos questionar o fato de que o caso da Sra. Emmy von N. era de histeria. O caráter brando de seus delírios e alucinações (enquanto suas outras atividades mentais permaneciam intactas), a modificação de sua personalidade e de seu acervo de lembranças quando se encontrava num estado de sonambulismo artificial, a anestesia em sua perna dolorida, certos dados revelados em sua anamnese, sua nevralgia ovariana, etc. não admitem dúvida quanto à natureza histérica da doença, ou, pelo menos, da paciente. Se alguma questão pode ser levantada, é apenas graças a um aspecto particular do caso, que também dá oportunidade para um comentário de validade geral. Como explicamos na “Comunicação Preliminar” que aparece no início deste volume, consideramos os sintomas histéricos como efeitos e resíduos de excitações que atuaram sobre o sistema nervoso como traumas. Não há permanência de resíduos dessa natureza quando a excitação original é descarregada por ab-reação ou pela atividade do pensamento. Não é mais possível, a esta altura, evitar a introdução da idéia de quantidades (ainda que não mensuráveis). Devemos considerar o processo como se uma soma de excitação, atuando sobre o sistema nervoso, se transformasse em sintomas crônicos, na medida em que não fosse empregada em ações externas na proporção de sua quantidade. Ora, estamos habituados a verificar que, na histeria, uma parte considerável dessa “soma de excitação” do trauma é transformada em sintomas puramente somáticos. Foi essa característica da histeria que por tanto tempo atrapalhou seu reconhecimento como um distúrbio psíquico.
Se, para sermos breves, adotarmos o termo “conversão” para designar a transformação da excitação psíquica em sintomas somáticos crônicos, que é tão característica da histeria, podemos então dizer que o caso da Sra. Emmy von N. apresentava apenas uma pequena quantidade de conversão. A excitação, que era originariamente psíquica, permaneceu em sua maior parte nessa esfera, e é fácil compreender que isso lhe confere uma semelhança com as outras neuroses, não histéricas. Existem casos de histeria em que todo o excedente da estimulação sofre conversão, de modo que os sintomas somáticos da histeria se intrometem no que parece ser uma consciência inteiramente normal. A transformação incompleta, no entanto, é mais comum, de modo que pelo menos parte do afeto que acompanha o trauma persiste na consciência como um componente do estado emocional do indivíduo.
Os sintomas psíquicos em nosso atual caso de histeria, em que havia muito pouca conversão, podem ser divididos em alterações do humor (angústia, depressão melancólica), fobias e abulias (inibições da vontade). As duas últimas classes de perturbação psíquica são consideradas pela escola francesa de psiquiatria como estigmas da degenerescência neurótica, mas em nosso caso verifica-se que foram suficientemente determinadas por experiências traumáticas. Essas fobias e abulias eram, na sua maior parte, de origem traumática, como mostrarei com detalhes.
Algumas das fobias da paciente, é verdade, correspondiam às fobias primárias dos seres humanos, e especialmente dos neuropatas – em particular, por exemplo, seu medo de animais (cobras e sapos, bem como todos os vermes de que Mefistófeles se gabava de ser o senhor), de tempestades e assim por diante. Mas também essas fobias se firmaram mais graças a acontecimentos traumáticos. Assim, seu medo dos sapos foi fortalecido pela experiência, nos primeiros anos de infância, de um de seus irmãos lhe ter atirado um sapo morto, o que levou a seu primeiro acesso de espasmos histéricos |ver em [1]|; e de modo semelhante, seu medo de tempestades foi provocado pelo choque que deu lugar a seu estalido característico | ver em [1]|, e o medo de nevoeiros pelo passeio na Ilha de Rügen |ver em [1]|. Não obstante, neste grupo o medo primário – ou talvez se pudesse dizer o medo instintivo – (considerado como um estigma psíquico) desempenha o papel preponderante.
As outras fobias, mais específicas, também foram explicadas por acontecimentos bem determinados. Seu temor de choques inesperados e súbitos era conseqüência da terrível impressão que teve ao ver o marido, que parecia estar gozando de ótima saúde, sucumbir a um ataque cardíaco diante de seus próprios olhos. Seu medo dos estranhos e das pessoas em geral revelou-se originário da época em que estava sendo perseguida pela família |do marido| e tendia a ver um agente deles em cada estranho, e de quando lhe pareceu provável que os estranhos soubessem das coisas que estavam sendo espalhadas por toda parte a respeito dela, por escrito e verbalmente |ver em [1]-[2]|. Seu medo dos hospícios e de seus ocupantes remontava a toda uma série de acontecimentos tristes ocorridos em sua família e às histórias despejadas em seus ouvidos atentos por uma empregada estúpida |ver em [1]|. Independentemente disso, essa fobia era sustentada, de um lado, pelo horror primário e instintivo que as pessoas sadias têm à loucura, e de outro, pelo medo sentido por ela, não menos do que por todos os neuróticos, de que ela mesma viesse a enlouquecer. Seu medo altamente específico de que houvesse alguém de pé atrás dela |ver em [1]| foi determinado por diversas experiências apavorantes na mocidade e mais tarde. Desde o episódio do hotel |ver em [1]|, que lhe foi especialmente aflitivo por causa de suas implicações eróticas, seu medo de que um estranho se esgueirasse para seu quarto foi muito acentuado. Por fim, seu medo de ser enterrada viva, que partilhava com tantos neuropatas, era inteiramente explicado por sua crença de que o marido não estava morto quando seu corpo foi levado – crença esta que expressava de modo tão comovente sua incapacidade de aceitar o fato de que sua vida com o homem a quem amava chegara a um fim súbito. Na minha opinião, contudo,todos esses fatores psíquicos embora possam responder pela escolha dessas fobias, não podem explicar-lhe a persistência. É necessário, julgo eu, acrescentar um fator neurótico para explicar sua persistência – o fato de que a paciente vinha vivendo há anos em estado de abstinência sexual. Tais circunstâncias se acham entre as causas mais freqüentes de uma tendência à angústia.
As abulias de nossa paciente (inibições da vontade, incapacidade de agir) admitem ainda menos que as fobias sejam consideradas como estigmas psíquicos causados por uma limitação geral da capacidade. Pelo contrário, a análise hipnótica do caso tornou claro que suas abulias eram determinadas por um duplo mecanismo psíquico – o qual, no fundo, era um só. Em primeiro lugar, uma abulia pode ser simples conseqüência de uma fobia. Isso ocorre quando a fobia se acha ligada a uma ação do próprio sujeito, e não a uma expectativa |de um fato externo| – por exemplo, em nosso caso atual, o medo de sair ou de se relacionar com as pessoas, em contraste com o medo de alguém se esgueirar para dentro do quarto. Aqui, a inibição da vontade é causada pela angústia concomitante à realização da ação. Seria errado considerar tais espécies de abulias como sintomas distintos das fobias correspondentes, embora se deva admitir que essas fobias podem existir (contanto que não sejam graves demais) sem produzir abulias. A segunda classe de abulias depende da presença de associações carregadas de afeto e não resolvidas que se oponham à vinculação com outras associações, e particularmente com qualquer uma que seja incompatível com elas. A anorexia da nossa paciente oferece o mais brilhante exemplo dessa espécie de abulia |ver em [1] |. Ela comia tão pouco por não gostar do sabor, e não podia apreciar o sabor porque o ato de comer, desde os primeiros tempos, se vinculara a lembranças de repulsa cuja soma de afeto jamais diminuíra em qualquer grau; e é impossível comer com repulsa e prazer ao mesmo tempo. Sua antiga repulsa às refeições permanecera inalterada porque ela era constantemente obrigada a reprimi-la, em vez de livrar-se dela por reação. Na infância ela fora forçada, sob ameaça de punição, a comer a refeição fria que lhe era repugnante, e nos anos posteriores tinha sido impedida, por consideração aos irmãos, de externar os afetos a que ficava exposta durante suas refeições em comum.
Neste ponto, talvez deva referir-me a um pequeno artigo no qual tentei dar uma explicação psicológica das paralisias histéricas (Freud 1893c). Nele cheguei à hipótese de que a causa dessas paralisias residiria na inacessibilidade a novas associações por parte de um grupo de representações vinculadas, digamos, a uma das extremidades do corpo; essa inacessibilidade associativa dependeria, por sua vez, do fato de a representação do membro paralisado estar ligada à lembrança do trauma – uma lembrança carregada de afeto que não fora descarregado. Mostrei, a partir de exemplos extraídos da vida cotidiana, que uma catexia como essa, de uma representação cujo afeto não foi decomposto, envolve sempre uma certa dose de inacessibilidade associativa e de incompatibilidade com novas catexias.
Até agora não consegui confirmar, por meio da análise hipnótica, essa teoria sobre as paralisias motoras, mas posso citar a anorexia da Sra. von N. como prova de que esse mecanismo é o que opera em certas abulias, e de que as abulias nada mais são que uma espécie altamente especializada – ou, para usar uma expressão francesa, “sistematizada” – de paralisia psíquica.
A situação psíquica da Sra. von N. pode ser caracterizada no seu essencial, ressaltando-se dois pontos. (1) Os afetos aflitivos vinculados a suas experiências traumáticas tinham ficado indecompostos – por exemplo, sua depressão, sua dor (pela morte do marido), seu ressentimento (por ser perseguida pelos parentes dele), sua repulsa (pelas refeições compulsórias), seu medo (das numerosas experiências assustadoras), e assim por diante. (2) Sua memória exibia uma intensa atividade, que, ora espontaneamente, ora em reação a um estímulo contemporâneo (por exemplo, as notícias da revolução em São Domingos |ver em [1]|), trazia seus traumas e os afetos concomitantes, pouco a pouco, até sua consciência atual. Minha conduta terapêutica baseou-se nessa atividade de sua memória, e esforcei-me todos os dias para resolver e livrar-me de tudo o que cada dia trazia à tona, até que o acervo acessível de suas lembranças patológicas pareceu estar esgotado.
Essas duas características psíquicas, que considero como geralmente presentes nos paroxismos histéricos, abriram caminho para muitas considerações importantes. Adiarei, contudo, a discussão das mesmas até que tenha dispensado certa atenção ao mecanismo dos sintomas somáticos.
Não é possível atribuir a mesma origem a todos os sintomas somáticos desses pacientes. Pelo contrário, mesmo a partir deste caso, que não os apresentava em grande número, verificamos que os sintomas somáticos de uma histeria podem surgir de várias maneiras. Ousarei, em primeiro lugar, incluir as dores entre os sintomas somáticos. Até onde posso ver, um grupo de dores da Sra. von N. fora por certo organicamente determinado por ligeiras modificações (de natureza reumática) nos músculos, tendões ou feixes, que causam muito mais dor nos neuróticos do que nas pessoas normais. Outro grupo de dores era, com certeza, as lembranças de dores – eram símbolos mnêmicos das épocas de agitação e cuidados prestados aos doentes, épocas que desempenharam papel de grande relevância na vida da paciente. É bem possível que essas dores também se tenham justificado, originariamente, em bases orgânicas, mas foram depois adaptadas para as finalidades da neurose. Baseio estas afirmativas sobre as dores da Sra. von N. principalmente em observações feitas em outro caso, as quais relatarei mais adiante. Quanto a este ponto particular, poucas informações puderam ser colhidas com a própria paciente.
Alguns dos notáveis fenômenos motores revelados pela Sra. von N. eram simplesmente expressão das emoções e podiam ser reconhecidos com facilidade como tal. Assim, a maneira como estendia as mãos para a frente com os dedos separados e retorcidos expressava horror, do mesmo modo que seu jogo facial. Esta era, com certeza, uma maneira mais viva e desinibida de expressar as emoções do que era comum entre as mulheres de sua instrução e raça. Na realidade, ela própria era comedida, quase rígida em seus movimentos expressivos quando não se encontrava em estado histérico. Outros de seus sintomas motores estavam, de acordo com ela própria, relacionados diretamente com suas dores. Agitada, ela brincava com os dedos (1888) |ver em [1]| ou esfregava as mãos uma na outra (1889) |ver em [1]| para impedir-se de gritar. Esse raciocínio nos obriga a lembrar de um dos princípios formulados por Darwin para explicar a expressão das emoções – o princípio do extravasamento da excitação |Darwin, 1872, Cap. III|, que explica, por exemplo, por que os cães abanam as caudas. Todos nós estamos acostumados, ao sermos atingidos por estímulos dolorosos, a substituir o grito por outros tipos de inervações motoras. Uma pessoa que tenha tomado a firme decisão de, no consultório do dentista, conservar a cabeça e a boca imóveis, e não colocar a mão no caminho, poderá no mínimo começar a bater com os pés.
Um método mais complicado de conversão é revelado pelos movimentos semelhantes a tiques da Sra. von N., como estalar a língua e gaguejar, chamar pelo nome “Emmy” nos estados confusionais |ver em [1]| e empregar a expressão “Fique quieto! Não diga nada! Não me toque!” (1888) |ver em [1]|. Dessas manifestações motoras, a gagueira e o estalido com a língua podem ser explicados segundo um mecanismo que descrevi, num breve artigo sobre o tratamento de um caso por sugestão hipnótica (1892-93), como “o acionamento de idéias antitéticas”. O processo, tal como exemplificado em nosso caso atual |ver em [1]| seria como se segue. Nossa paciente histérica, esgotada pela preocupação e pelas longas horas de vigília junto ao leito da filha enferma que afinal adormecera, disse a si mesma: “Agora você precisa ficar inteiramente imóvel para não acordar a menina.” É provável que essa intenção tenha dado origem a uma representação antitética, sob a forma de um medo de que, mesmo assim, ela fizesse um ruído que despertasse a criança do sono que tanto esperara. Representações antitéticas como essa surgem em nós de forma marcante quando nos sentimos inseguros de poder pôr em prática alguma intenção importante.
Os neuróticos, em cujo sentimento a respeito de si mesmos é difícil deixar de encontrar uma veia de depressão ou de expectativa ansiosa, formam um número maior dessas idéias antitéticas do que as pessoas normais, ou as percebem com mais facilidade, e as consideram mais importantes. No estado de exaustão de nossa paciente a idéia antitética, que seria normalmente rejeitada, mostrou-se a mais forte. Foi essa idéia que entrou em ação e que, para horror da paciente, na realidade produziu o ruído que ela tanto temia. A fim de explicar todo o processo, pode-se ainda presumir que sua exaustão fosse apenas parcial; ela afetava, para empregarmos a terminologia de Janet e seus seguidores, apenas seu ego “primário”, e não resultava igualmente num enfraquecimento da representação antitética.
Pode-se ainda presumir que foi seu horror ao ruído produzido contra sua vontade que tornou traumático aquele momento e fixou o ruído em si como um sintoma mnêmico somático de toda a cena. Creio, realmente, que o caráter do próprio tique, que consistia numa sucessão de sons emitidos de forma convulsiva e separados por pausas e que melhor se assemelharia a estalidos, revela traços do processo ao qual devia sua origem. Parece ter havido um conflito entre a intenção dela e a idéia antitética (a contravontade), o que deu ao tique seu caráter descontínuo e confinou a representação antitética em outras vias que não as habituais para inervar o aparelho muscular da fala.
A inibição espástica da fala da paciente – sua gagueira peculiar – era o resíduo de uma causa excitante fundamentalmente similar |ver em [1]-[2]|. Nesse caso, contudo, não foi o resultado da inervação final – a exclamação – mas o próprio processo de inervação – a tentativa de inibição convulsiva dos órgãos da fala – que foi transformado num símbolo do acontecimento em sua memória.
Esses dois sintomas, o estalido e a gagueira, que estavam assim intimamente relacionados pela história de sua origem, continuaram a se associar e se transformaram em sintomas crônicos após se repetirem numa ocasião semelhante. A partir daí, passaram a ser utilizados em mais um sentido. Tendo-se originado num momento de violento pavor, foram desde então ligados a qualquer medo (de acordo com o mecanismo da histeria monossintomática, que será descrito no Caso 5 |ver em [1] |), mesmo quando o medo não podia levar ao acionamento de uma representação antitética.
Os dois sintomas acabaram sendo vinculados a tantos traumas, e tiveram tantas razões para serem reproduzidos na memória, que passaram a interromper sempre a fala da paciente, sem nenhuma causa específica, à maneira de um tique sem significado. A análise hipnótica, entretanto, pôde demonstrar quanto significado se ocultava por trás desse aparente tique; e se o método de Breuer não conseguiu, nesse caso, eliminar de todo os dois sintomas de um só golpe, foi porque a catarse se estendera apenas aos três traumas principais, e não aos traumas associados de forma secundária.
Segundo as normas que regem os ataques histéricos, a exclamação “Emmy” durante seus acessos de confusão reproduzia, como havemos de recordar, seus freqüentes estados de desamparo durante o tratamento da filha. Essa exclamação estava ligada ao conteúdo do ataque por um complexo encadeamento de idéias e sua natureza era a fórmula protetora contra o ataque. A exclamação, por uma aplicação mais ampla do seu significado, provavelmente degeneraria num tique, como de fato já havia acontecido no caso da complicada fórmula protetora “Não me toque”, etc. Em ambas as situações o tratamento hipnótico impediu qualquer outra progressão dos sintomas; mas a exclamação “Emmy” mal havia surgido, e apanhei-a enquanto ainda estava em seu solo nativo, restrito aos ataques de confusão.
Como vimos, esses sintomas motores se originaram de várias maneiras: por meio do acionamento de uma representação antitética (como no estalido), por uma simples conversão da excitação psíquica em atividade motora (como na gagueira), ou por uma ação voluntária durante um paroxismo histérico (como nas medidas protetoras exemplificadas pela exclamação “Emmy” e pela fórmula mais longa). Mas como quer que esses sintomas motores se tenham originado, todos têm uma coisa em comum. Pode-se demonstrar que possuem uma ligação originária ou de longa data com os traumas, e representam símbolos destes nas atividades da memória.
Outros dos sintomas somáticos da paciente não eram em absoluto de natureza histérica. Isto se aplica, por exemplo, às cãibras no pescoço, que considero como uma forma modificada de enxaqueca |ver em [1]| e que, como tal, não devem ser classificadas como uma neurose, mas como um distúrbio orgânico. Os sintomas histéricos, porém, ligam-se regularmente a tais distúrbios. As cãibras no pescoço da Sra. von N., por exemplo, eram empregadas para fins dos ataques histéricos, embora ela não tivesse a seu dispor a sintomatologia típica dos ataques histéricos.
Ampliarei esta descrição do estado psíquico da Sra. von N. com algumas considerações sobre as alterações patológicas de consciência que puderam ser observadas nela. Tais como suas cãibras no pescoço, os acontecimentos aflitivos presentes (cf. seu último delírio no jardim |em [1]|) ou qualquer coisa que a fizesse recordar com intensidade qualquer de seus traumas levavam-na a um estado de delírio. Em tais estados – e as poucas observações que fiz não me conduziram a nenhuma outra conclusão – havia uma limitação da consciência e uma compulsão a associar, semelhante à que predomina nos sonhos |em. [1]|; as alucinações e ilusões eram facilitadas até o mais alto grau e faziam-se inferências tolas ou mesmo disparatadas. Esse estado, que era comparável ao da alienação alucinatória, provavelmente representava um ataque. Poderia ser encarado como uma psicose aguda (servindo como equivalente de um ataque) que seria classificada como uma situação de “confusão alucinatória”. Uma outra semelhança entre esses seus estados e um ataque histérico típico foi mostrada pelo fato de que uma parcela das lembranças traumáticas enraizadas desde longa data podia em geral ser detectada como subjacente ao delírio. A transição de um estado normal para um delírio ocorria muitas vezes de forma imperceptível. Num dado momento, ela ia conversando de modo perfeitamente racional sobre assuntos de pequena importância emocional e, à medida que a conversa passava para idéias de natureza aflitiva, eu notava por seus gestos exagerados ou pelo surgimento de suas fórmulas habituais de fala, etc., que ela se encontrava num estado de delírio. No início do tratamento o delírio durava o dia inteiro, de modo que era difícil definir com certeza se quaisquer sintomas – como seus gestos – faziam parte de seu estado psíquico como meros sintomas de um ataque, ou se – como o estalido e a gagueira – tinham-se tornado autênticos sintomas crônicos. Muitas vezes, só após o evento é que era possível distinguir entre o que tinha acontecido num delírio e o que tinha acontecido em seu estado normal, pois os dois estados estavam separados em sua memória e, algumas vezes, ela ficava extremamente surpresa ao saber das coisas que o delírio havia introduzido aos poucos em sua conversa normal. Minha primeira entrevista com ela constituiu o exemplo mais marcante da maneira como os dois estados se entrelaçavam sem prestar nenhuma atenção um ao outro. Somente num momento dessa gangorra psíquica foi que sua consciência normal, em contato com o tempo presente, mostrou-se afetada: foi quando me deu uma resposta oriunda do delírio e disse ser “uma mulher que datava do século passado” |ver em [1]|.
A análise desses estados delirantes na Sra. von N. não foi realizada de forma completa, em virtude de ter sua condição melhorado tão depressa que os delírios se tornaram nitidamente diferenciados de sua vida normal e se restringiram aos períodos de suas cãibras no pescoço. Por outro lado, colhi grande número de informações sobre o comportamento da paciente num terceiro estado, o do sonambulismo artificial. Enquanto, em seu estado normal, ela não tinha nenhum conhecimento das experiências psíquicas ocorridas durante seus delírios e o sonambulismo, tinha acesso durante o sonambulismo, às lembranças de todos os três estados. A rigor, portanto, era no estado de sonambulismo que ela se encontrava no auge de sua normalidade. Realmente, se eu deixar de lado o fato de que no sonambulismo ela era muito menos reservada comigo do que em seus melhores momentos da vida cotidiana – isto é, que no sonambulismo me dava informações sobre sua família e coisas semelhantes, enquanto nas outras ocasiões me tratava como um estranho – e se, além disso, eu desprezar o fato de que ela exibia o grau pleno de sugestionabilidade que é característico do sonambulismo, serei forçado a dizer que durante o sonambulismo ela se achava num estado inteiramente normal. Era interessante observar que, por outro lado, seu sonambulismo não apresentava nenhum sinal de ser supernormal, mas estava sujeito a todas as falhas mentais que estamos acostumados a associar a um estado normal de consciência.
Os exemplos que se seguem esclarecem o comportamento de sua memória no sonambulismo. Certo dia, numa conversa, ela expressou seu encanto pela beleza de uma planta num vaso que decorava o saguão de entrada da casa de saúde. “Mas qual é o nome dela, doutor? O senhor sabe? Eu sabia seus nomes em alemão e latim, mas esqueci.” A paciente tinha amplo conhecimento de plantas, ao passo que fui obrigado, nessa ocasião, a admitir minha falta de preparo em botânica. Alguns minutos depois perguntei-lhe, sob hipnose, se ela agora sabia o nome da planta do saguão. Sem qualquer hesitação, respondeu: “O nome em alemão é ‘Tuerkenlilie’ |martagão|; esqueci mesmo o nome em latim.” De outra feita, quando se sentia bem de saúde, falou-me de uma visita que fizera às catacumbas romanas, mas não conseguia recordar-se de dois termos técnicos, nem pude eu ajudá-la. Logo depois perguntei-lhe, sob hipnose, quais as palavras que estavam em sua mente. Mas ela também não soube dizê-las em hipnose, de modo que lhe falei: “Não se preocupe mais com elas agora, mas quando estiver no jardim amanhã, entre cinco e seis da tarde – mais perto das seis do que das cinco – elas subitamente lhe ocorrerão.” Na noite seguinte, enquanto conversávamos sobre algo que não tinha nenhuma relação com as catacumbas, ela subitamente exclamou: “’Cripta’, doutor, e ‘Columbário’.” “Ah! essas são as palavras em que a senhora não conseguia pensar ontem. Quando foi que lhe ocorreram?” “Hoje à tarde no jardim, pouco antes de eu subir para meu quarto.” Vi que, com isso, ela queria que eu soubesse que havia seguido com precisão minhas instruções quanto ao horário, já que tinha o hábito de sair do jardim por volta das seis horas da tarde.
Vemos assim que mesmo no sonambulismo ela não tinha acesso a toda a extensão do seu conhecimento. Mesmo nesse estado havia uma consciência real e outra potencial. Muitas vezes acontecia que, quando eu lhe perguntava, durante seu sonambulismo, de onde provinha esse ou aquele fenômeno, ela franzia a testa e, depois de uma pausa, respondia num tom de desculpas: “Não sei.” Em tais ocasiões eu tinha adquirido o hábito de dizer: “Pense por um momento; virá sem nenhum rodeio”; e depois de breve reflexão, ela conseguia dar-me a informação desejada. Mas algumas vezes acontecia nada lhe ocorrer, e eu era obrigado a deixá-la com a tarefa de lembrar-se daquilo no dia seguinte, o que nunca deixou de acontecer.
Em sua vida cotidiana a Sra. von N. evitava escrupulosamente qualquer inverdade, e jamais mentiu para mim sob hipnose. Às vezes, contudo, dava-me respostas incompletas e retinha parte da história até eu insistir uma segunda vez para que a completasse. Em geral, como no exemplo citado em [1], era o desagrado inspirado pelo assunto que lhe fechava a boca no sonambulismo, assim como na vida cotidiana. Não obstante, apesar desses traços restritivos, a impressão causada por seu comportamento mental durante o sonambulismo era, no conjunto, a de um desinibido desenrolar de seus poderes mentais e de um pleno domínio sobre seu acervo de lembranças.
Embora não se possa negar que no estado de sonambulismo ela era altamente sugestionável, estava longe de exibir uma ausência patológica de resistência. Pode-se asseverar, de modo geral, que eu não lhe causava maior impressão nesse estado de que esperaria conseguir se estivesse procedendo a uma pesquisa dessa natureza sobre os mecanismos psíquicos de alguém em pleno gozo de suas faculdades e que tivesse plena confiança no que eu dizia. A única diferença era que a Sra. von N. era incapaz, no que era considerado seu estado normal, de ter para comigo tal atitude mental favorável. Quando, como aconteceu com sua fobia por animais, eu não conseguia apresentar-lhe razões convincentes, ou não penetrava na história psíquica da origem de um sintoma, mas tentava atuar por meio de sugestão autoritária, invariavelmente notava em seu rosto uma expressão tensa e insatisfeita; e quando, ao final da hipnose, perguntava-lhe se ainda tinha medo do animal, ela respondia: “Não… já que o senhor insiste.” Uma afirmação como esta, baseada apenas em sua obediência a mim, nunca tinha êxito, como também não o alcançavam as numerosas injunções genéricas que lhe fazia em lugar das quais bem poderia ter repetido a simples sugestão de que ela ficasse boa.
Mas essa mesma pessoa que se apegava tão obstinadamente a seus sintomas em face da sugestão e só os abandonava em resposta à análise psíquica ou à convicção pessoal era, por outro lado, tão dócil quanto a melhor paciente encontrável em qualquer hospital, no que dizia respeito às sugestões irrelevantes – na medida em que se tratasse de assuntos não relacionados com sua doença. Já apresentei exemplos de sua obediência pós-hipnótica ao longo do relato do caso. Não me parece haver nada de contraditório nesse comportamento. Também aqui a idéia mais forte estava destinada a se afirmar. Se penetrarmos no mecanismo das “idées fixes”, constataremos que se acham baseadas e apoiadas por tantas experiências, que atuam com tal intensidade, que não nos podemos surpreender ao descobrir que essas idéias são capazes de opor uma resistência bem-sucedida à idéia contrária apresentada pela sugestão, que só está revestida de poderes limitados. Apenas de um cérebro verdadeiramente patológico é que se poderiam varrer por mera sugestão produtos tão bem fundamentados de eventos psíquicos intensos.
Foi enquanto estudava as abulias da Sra. von N. que comecei a ter sérias dúvidas quanto à validade da asserção de Bernheim de que “tout est dans la suggestion” |“tudo está na sugestão”| e sobre a dedução do seu sagaz amigo Delboeuf: “Comme quoi il n’y a pas d’hypnotisme” |“Sendo assim, não existe o que se chama de hipnotismo”|. E até hoje não posso compreender como se pode supor que, apenas levantando um dedo e dizendo uma vez “durma”, eu tinha criado na paciente o estado psíquico peculiar em que sua memória tinha acesso a todas as suas experiências psíquicas. Talvez eu tenha evocado esse estado com minha sugestão, mas não o criei, visto que suas características – que, aliás, são encontradas universalmente – foram uma grande surpresa para mim.
O relato do caso esclarece suficientemente a maneira como o trabalho terapêutico foi conduzido durante o sonambulismo. Como é praxe na psicoterapia hipnótica, lutei contra as representações patológicas da paciente por meio de garantias e proibições e apresentando toda espécie de representações opostas. Mas não me contentei com isso. Investiguei a gênese dos sintomas individuais a fim de poder combater as premissas sobre as quais se erguiam as representações patológicas. No curso dessa análise costumava acontecer que a paciente expressava verbalmente, com a mais violenta agitação, assuntos cujo afeto associado até então só se manifestara como uma expressão de emoção. |ver em [1].| Não sei dizer quanto do êxito terapêutico, em cada situação, deveu-se ao fato de eu ter eliminado o sintoma por sugestão in statu nascendi, e quanto se deveu à transformação do afeto por ab-reação, já que combinei esses dois fatores terapêuticos. Por conseguinte, este caso não pode ser rigorosamente utilizado como prova da eficácia terapêutica do método catártico; ao mesmo tempo, devo acrescentar que só os sintomas de que fiz uma análise psíquica foram de fato eliminados de forma permanente.
De modo geral o êxito terapêutico foi considerável, mas não duradouro. A tendência da paciente a adoecer de forma semelhante sob o impacto de novos traumas não foi afastada. Qualquer um que desejasse empreender a cura definitiva de um caso de histeria como este teria que penetrar mais a fundo do que eu o fiz, em minha tentativa, no complexo de fenômenos. A Sra. von N. era, sem dúvida, uma personalidade com grave hereditariedade neuropática. Parece provável que não pode haver histeria independente de uma predisposição dessa natureza. Mas, por outro lado, a predisposição sozinha não faz a histeria. Deve haver razões que a trazem à tona, e, na minha opinião, essas razões devem ser apropriadas: a etiologia é de natureza específica. Já tive ocasião de mencionar que, na Sra. von N., os afetos pertinentes a um grande número de experiências traumáticas tinham ficado retidos, e que a atividade dinâmica de sua memória fazia aflorar à sua mente ora um, ora outro desses traumas. Aventurar-me-ei agora a formular uma explicação do motivo por que ela retinha os afetos dessa maneira. Esse motivo, é verdade, estava ligado a sua predisposição hereditária. Por um lado, seus sentimentos eram muito intensos; ela possuía uma natureza veemente, capaz das mais fortes paixões. Por outro, desde a morte do marido, tinha vivido em completa solidão mental; a perseguição que lhe moveram os parentes a havia tornado desconfiada dos amigos, e ela ficou atentamente em guarda para impedir que qualquer pessoa adquirisse demasiada influência sobre suas ações. O círculo de suas obrigações era muito amplo, e ela realizava sozinha todo o trabalho mental que estas lhe impunham, sem um amigo ou confidente, quase isolada da família e prejudicada por sua conscienciosidade, sua tendência a se atormentar e também, muitas vezes, pelo desamparo natural da mulher. Em suma, o mecanismo da retenção de grandes quantidades de excitação, independente de tudo o mais, não pode ser desprezado neste caso. Baseava-se em parte nas circunstâncias de sua vida, e em parte em sua predisposição natural. Sua aversão, por exemplo, a dizer qualquer coisa sobre si mesma era tão grande, que, como notei com assombro, em 1891, nenhum dos visitantes diários que iam à sua casa percebia que ela estava doente nem tinha consciência de que eu era seu médico.
Será que isso esgota a etiologia deste caso de histeria? Penso que não, pois, na época de seus dois tratamentos, eu ainda não levantara em minha própria mente as questões a que é preciso responder antes que seja possível uma explicação completa de um caso como este. Sou agora de opinião que deve ter havido algum fator adicional para provocar a irrupção da doença precisamente nestes últimos anos, considerando-se que as condições etiológicas operantes tinham estado presentes durante muitos anos anteriormente. Também me ocorreu que, dentre todas as informações íntimas que me foram dadas pela paciente, houve uma ausência completa do elemento sexual, que é, afinal de contas, passível mais do que qualquer outro de ocasionar traumas. É impossível que suas excitações nesse campo não tivessem deixado quaisquer vestígios; o que me foi permitido ouvir foi, sem dúvida, uma editio in usum delphini |uma edição expurgada| da história de sua vida. A paciente comportava-se com o maior e mais natural senso de decoro, a julgar pelas aparências, sem nenhum traço de pudicícia. Quando, porém, reflito sobre a reserva com que me narrou, sob hipnose, a pequena aventura de sua empregada no hotel, não posso deixar de suspeitar de que essa mulher, que era tão passional e tão capaz de sentimentos fortes, não tenha vencido suas necessidades sexuais sem grandes lutas, e que, por vezes, suas tentativas de suprimir essa pulsão, que é de todas a mais poderosa, tinham-na exposto a seu grave esgotamento mental. Uma vez, ela admitiu que ainda não se havia casado de novo porque, em vista da sua grande fortuna, não podia dar crédito ao desinteresse de seus pretendentes e porque se recriminaria por prejudicar as expectativas de suas duas filhas com um novo matrimônio.
Cabe-me fazer mais uma observação antes de encerrar o caso clínico da Sra. von N. O Dr. Breuer e eu a conhecíamos razoavelmente bem e há bastante tempo, e costumávamos sorrir ao comparar seu caráter com o quadro da psique histérica que pode ser acompanhado desde os primeiros tempos por meio dos trabalhos e das opiniões dos médicos. Nós tínhamos aprendido, a partir de nossas observações da Sra. Caecilie M., que o tipo mais grave de histeria pode coexistir com dons da natureza mais rica e mais original – uma conclusão mais do que comprovada na biografia de mulheres eminentes na história e na literatura. Da mesma forma, a Sra. Emmy von N. nos deu um exemplo de como a histeria é compatível com um caráter impecável e um modo de vida bem orientado. A mulher que viemos a conhecer era admirável. A seriedade moral com que encarava suas obrigações, sua inteligência e energia, que não eram inferiores às de um homem, e seu alto grau de instrução e de amor à verdade nos impressionaram grandemente, enquanto seu generoso cuidado para com o bem-estar de todos os seus dependentes, sua humildade de espírito e o requinte de suas maneiras revelaram também suas qualidades de verdadeira dama. Descrever essa mulher como “degenerada” seria distorcer por completo o significado desse termo. Faríamos bem em distinguir o conceito de “predisposição” do de “degenerescência” tais como aplicados às pessoas; de outra forma, ver-nos-emos forçados a admitir que a humanidade deve uma grande parcela de suas maiores realizações ao esforço de “degenerados”.
Devo igualmente confessar que não vejo na história da Sra. von N. nenhum sinal da “ineficiência psíquica” à qual Janet atribui a gênese da histeria. De acordo com ele, a predisposição histérica consiste numa restrição anormal do campo da consciência (em virtude da degenerescência hereditária), que resulta no desprezo por grupos inteiros de representações e, mais tarde, numa desintegração do ego e na organização de personalidades secundárias. Se assim fosse, o que resta do ego após a retirada dos grupos psíquicos histericamente organizados seria, por necessidade, também menos eficiente do que um ego normal; e de fato, de acordo com Janet, o ego na histeria é afligido por estigmas psíquicos, condenado ao monoideísmo e incapaz dos atos volitivos da vida cotidiana. Janet, julgo eu, cometeu aqui o erro de promover o que constituem os efeitos secundários das alterações da consciência decorrentes da histeria à posição de determinantes primários da histeria. O assunto merece maior consideração em outro trecho, mas na Sra. von N. não havia qualquer sinal de tal ineficiência. Por ocasião de seus piores momentos, ela era e continuou a ser capaz de desempenhar seu papel na administração de uma grande empresa industrial, de manter uma vigilância constante sobre a educação das filhas e de manter sua correspondência com pessoas preeminentes do mundo intelectual – em suma, de cumprir com suas obrigações bastante bem para que sua doença permanecesse oculta. Inclino-me a acreditar, portanto, que tudo isso envolvia com excesso considerável de eficiência, que talvez não pudesse ser mantido por muito tempo e estava fadado a levar ao esgotamento – a uma “misère psychologique” |“empobrecimento psicológico”| secundária. Parece provável que algumas perturbações desse tipo em sua eficiência estivessem começando a se fazer sentir na época em que a vi pela primeira vez, mas, seja como for, uma histeria grave estivera presente por muitos anos antes do aparecimento dos sintomas de esgotamento.

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